Artigos

O 15 de maio e as faces “verídicas: e “inverídicas” do herói Veiga Cabral

No amanhecer do dia 15 de maio de 1895, o vilarejo situado no território contestado pelo Brasil e pela França, foi surpreendido  por tropas francesas comandadas pelo capitão Lunier.


Célio Alício
Historiador, professor da rede pública e particular de ensino e radialista

O dia 15 de maio é um feriado estadual dedicado à memória de Francisco Xavier da Veiga Cabral, o chamado “Cabralzinho’ e rememora a invasão francesa da Vila do Espírito Santo do Amapá (atual cidade de Amapá), ocorrida há 124 anos. No amanhecer do dia 15 de maio de 1895, o vilarejo situado no território contestado pelo Brasil e pela França, foi surpreendido  por tropas francesas comandadas pelo capitão Lunier.

A invasão foi uma tentativa extrema dos franceses para prender, o comerciante Veiga Cabral, o Cabralzinho, líder de um movimento político e militar denominado “Triunvirato”, contrario à presença francesa na região. Sob a liderança do Triunvirato e comandados por Cabralzinho, os brasileiros reagiram à agressão e muitas vidas inocentes foram ceifadas, pois os militares franceses usaram de extrema violência, assassinando cruelmente crianças, mulheres e idosos da pequena vila.

Embora tenha sido condecorado como “O Herói do Amapá” e se tornado herói da república brasileira, Cabralzinho não conseguiu sozinho esse feito. O povo da vila assumiu a defesa do lugar e lutou bravamente para rechaçar os invasores, muito embora os mesmos estivessem em maior numero e mais bem armados e equipados. Não se tratava de uma saga patriótica, mas de uma luta pela sobrevivência que colocava sob confronto vários interesses e que envolviam brasileiros, franceses, mercenários, aventureiros, forasteiros, indígenas, religiosos, entre outros.

O massacre genocida da vila do Espírito Santo do Amapá repercutiu sem todo o país e reverbera no exterior a ponto de Brasil e França retomarem as negociações no campo diplomático e finalmente, no dia 1° de dezembro de 1900, sob arbitragem do governo da Suíça, o ganho de causa foi dado ao governo brasileiro através do Laudo Suíço, quer reafirmou e referendou as determinações do Tratado de Utrecht, assinado entre Portugal e França em 1713 e que definia o rio Oiapoque como limite geográfico entre o Brasil e a Guiana Francesa.

Encerrada a questão do Contestado, as atenções se  voltaram  com o passar do tempo para a inicial avaliação e posterior julgamento, chegando mesmo à condenação da figura de Cabralzinho. As polêmicas foram gradativamente se avolumando e se acirrando à medida que os relatos e pesquisas de estudiosos renomados como Emílio Goeldi, começaram a descortinar a face do herói republicano, a partir da coleta de depoimentos de sobreviventes do massacre ocorrido naquela manhã sangrenta de 15 de maio de 1895 na Vila do Espírito Santo do Amapá.

Seus caudatários e defensores exaltam seu espírito de liderança, comportamento inquieto e vocação guerreira e revolucionária. Para esse segmento, Cabralzinho, filho de uma família ligada à Cabanagem e aos primórdios do republicanismo no Pará, foi um dos expoentes do Partido Republicano Democrático (PRD), e assumiu a liderança da oposição ao governo paraense, não economizando esforços  para a sua derrubada por meio de levantes golpistas. Depois de fugir para os EUA, onde se apaixonou pelo republicanismo ianque, retornou para o Brasil e no começo dos anos de 1890, fugiu novamente do Pará para a região do Contestado franco-brasileiro.

Para seus inquisidores ele não passou de um farsante que se consagrou em cima do esforço coletivo e que a República brasileira, então recém-nascido nascida, na busca por fei5os heroicos que a legitimassem ao mesmo tempo em que sepultassem definitivamente a monarquia, fabricou seus mitos e heróis, entre estes o “bravo” e “intrépido” Veiga Cabral. Dos questionamentos, passando pela contestação e chegando ao achincalhe e à execração, a figura do herói sofreu ranhuras significativas e as paredes dos seus feitos se encheram de infiltrações e fissuras, deixando de ser glorificado para servir de piada e chacotas, algumas delas de tremendo mal gosto.

O debate foi se acalorando e atravessando décadas até ultrapassar um século desde o agora distante 15 de maio de 1895, sem que as polêmicas refreassem. Pelo contrário, ganharam mais combustão com o desenvolvimento de pesquisas acadêmico-científicas levadas à efeito sobretudo em Belém e, com o advento da Universidade Federal do Amapá  (UNIFAP), as pesquisas historiográficas desenvolvidas em nível local, fizeram da questão do Contestado e do verdadeiro papel de Cabralzinho uma das pautas recorrentes e renitentes, saindo do âmbito da academia para ocupar espaços no circuito midiático e passando a compor o imaginário popular e o cotidiano da sociedade amapaense, em seus diferentes segmentos.

Cabralzinho é sem dúvida um personagem histórico dos mais admiráveis, assim como o são todos os heróis mitificados e cujos feitos suscitam questionamentos. Sendo produto de um contexto histórico em que a então nascente república brasileira buscava se afirmar e se consolidar simultaneamente ao processo de definição de suas fronteiras para que o território nacional pudesse atingir as feições, contornos e dimensões continentais que atualmente ostenta, sendo o quinto maior país do planeta em termos de extensão geográfica.

Nesse sentido, Cabralzinho, o comandante francês Lunier, o “apátrida” Trajano, o cônego Domingos Maltez, Desidério Antônio Coelho, o heróico morador Félix (a quem muitos estudiosos atribuem o verdadeiro heroísmo e bravura), Antonio Gonçalves Tocantins, entre outros indivíduos que participaram direta ou indiretamente da saga do Contestado Franco-Brasileiro, são personagens de uma história e cada um exerceu o papel que lhe coube na trama ambientada na fronteira com a Guiana Francesa desde os primórdios da colonização portuguesa na Amazônia e das incursões de outros países que ambicionavam colonizar a região.

Veiga Cabral assumiu o protagonismo assim como outras personalidades assim o fizeram, por conveniência e ao sabor dos interesses de grupos sociais que política e economicamente impuseram sua proeminência em relação aos grupos menos providos econômica e culturalmente.  Longe de lutarem pela nacionalidade brasileira ou francesa, o “faroeste caboclo” em que se tornou o cotidiano da área do Contestado era uma busca diária pela sobrevivência em meio às disputas entre dois países pela exploração do ouro que abundava na região.

Os desdobramentos dessa disputa nada mais foram senão “brechas” ou oportunidades para “oportunismos oportunos” do jogo “do cada um por si” e que o acaso olhe por todos. A posteridade, escolhe o “herói” que melhor lhe cabe.


Deixe seu comentário


Publicidade