José Sarney
Literatura, Vocação
Na Academia Brasileira de Letras, a editora Ciranda Cultural lançou, sob um novo selo, Principis, meus três romances: O Dono do Mar, Saraminda e A Duquesa vale uma Missa. Ao mesmo tempo a Academia me fez uma homenagem que muito me tocou, ao me dedicar uma sessão especial, com meus confrades Domício Proença e Antônio Carlos Secchin analisando minha obra de prosador e de poeta.
Comecei a escrever muito moço. Com meu pai, aprendi a amar os livros, amor que me acompanha por toda a vida. Sem eles não sei viver: vivo com eles. Primeiro aprendi a ler alguns clássicos, na pequena biblioteca que tínhamos em São Bento, no interior do Maranhão. Depois comecei a fazer, à mão, pequenos livros, com folhas datilografadas, A Canção Inicial e Poemas Decadentes. Participei, mais tarde, de um pequeno grupo que sonhava recuperar o Maranhão: éramos escritores e pintores. Ali tive grandes companheiros, como o grande poeta Bandeira Tribuzzi, que fora estudar em Coimbra e nos trouxera a descoberta da poesia portuguesa, sobretudo Fernando Pessoa.
Com o meu primeiro livro de poesia, que afinal chamei de A Canção Inicial, entrei para a Academia Maranhense de Letras. Mas a política me chamou, era meu destino. Minha vocação era a literatura. Com ela noivei todas as noites.
Quando o destino me levou ao governo do Maranhão, entre as solicitações permanentes da tarefa de romper com os vícios que atrasavam o Estado naquela época, encontrei tempo para escrever um livro de contos, Norte das Águas, que teve uma excelente acolhida da crítica. Habituei-me a afastar as demandas da política — que me cobrava os textos de discursos, pareceres, projetos de lei etc. — para escrever literatura. Publiquei mais dois livros de poesia, Os Maribondos de Fogo e Saudades Mortas, outros contos, os três romances, ensaios, conferências.
Um dia reuniram a fortuna crítica de minha obra literária — não só o que se escreveu no Brasil, mas em todo o mundo — e me assustei: em 2018, tinha 119 títulos, com 168 edições; e de lá para cá já saíram vários livros e novas edições.
A política, além do tempo que me tomou, muito prejudicou a acolhida de minha obra literária. Não que não tenha tido aqui grandes elogios de grandes escritores, como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Darcy Ribeiro e tantos outros, mas muitos confundiram o político com o escritor, e passaram a este a hostilidade àquele, enquanto no exterior fui analisado apenas como escritor, tendo tido uma excepcional acolhida da crítica e de personalidades como Lévi-Strauss ou Maurice Druon — e tido, além das edições padrão, a acolhida para um público maior, em coleções de bolso como Le Petit Vermillion e a Folio, da Gallimard. Eu também fui responsável, pois fui um mau autor, não pude dedicar à minha obra a atenção que todas precisam de seu autor.
Foi em parte na busca de alcançar as novas gerações que combinei estas novas edições, que receberam da editora um tratamento moderno, com excelentes capas e a possibilidade de serem compradas num estojo que reúne os três romances. Para temas diferentes, fiz abordagens diferentes, e não sei se quem tiver lido um terá ideia do que são os outros. O Dono do Mar é uma história de pescadores, lendas e tempos do Maranhão; Saraminda se passa em torno do ouro do Amapá e de uma mulher que com ele se identifica; e A Duquesa vale uma Missa é a visão íntima de uma paixão diferente.
Foi sobretudo Norte das Águas que me conduziu, pelas mãos de grandes escritores da Casa, que já eram meus amigos, à Academia Brasileira de Letras. Ali entrei com 50 anos, estou, portanto, há 45 e há cerca de 20 anos sou seu decano — coisa meio triste, pois significa que todos que lá estavam quando fui acolhido já se foram. Fiquem tranquilos, eu nem sonhava em ser Presidente da República, e meu lugar na Casa é do escritor, não do político.
É assim, me sentindo rejuvenescido com o lançamento destes livros, que estou emocionado e grato com a homenagem que a Academia me presta.
Não foi uma homenagem ao meu destino, que cumpri como pude, mas à minha vocação, a literatura.
************************************
A alegria do Brasil veio da África
Quando Presidente da República, visitei Cabo Verde, então governado pelo meu saudoso amigo Aristides Pereira. Foi uma admiração baseada na sua história de lutador pela independência de Cabo Verde e por seu trabalho à frente daquele país.
Foi uma recepção inesquecível. Na ilha da cidade de Praia, sede do governo, desembarcamos e fomos recebidos por uma multidão com galhos de árvores, tambores e uma grande alegria. Estava acompanhado por Jorge Amado.
Quando vi a alegria naquelas manifestações musicais, virei para Jorge e disse: “Você está vendo o que estou vendo?” E em seguida acrescentei: “Estou vendo na beleza dessa multidão em sua manifestação que a alegria do Brasil e do povo brasileiro veio da África. Você pode ver esta multidão aqui em Cabo Verde como eu posso ver no Maranhão, e você, na Bahia.”
O sangue africano, fundamentalmente, contribuiu para a formação do caráter e da identidade do povo brasileiro, de tal modo que podemos afirmar sermos um país mestiço. Praticamente nenhum brasileiro pode negar que essa marca esteja presente em seu DNA.
Pois bem. É uma vergonha que a escravidão no Brasil tenha se prolongado até o fim do século XIX. Mas a libertação dos escravos foi um dos maiores movimentos brasileiros na construção de uma consciência nacional contra o sistema de terror que a escravidão representava.
O terceiro maior quilombo do Brasil foi comandado pelo Negro Cosme, líder do Quilombo da Lagoa Amarela, no Maranhão. A primeira coisa que fez no Estado foi fundar uma escola de leitura e escrita. Ali se reuniam quase três mil negros. Foi mártir, enforcado em Itapecuru-mirim, no Maranhão.
Não me canso de dizer que, ao lado de Zumbi, a luta da raça negra deve invocar essa figura notável, heroica, brava e altamente revolucionadora, que nos deu o exemplo de querer para o seu povo a ascensão através da educação.
No Brasil não podemos falar da Abolição sem invocar a figura de Joaquim Nabuco, que dedicou sua vida, sua obra e seu talento a essa causa, ajudado pelo maranhense Joaquim Serra, a quem o próprio Nabuco reconhecia que, sem ele, jornalista e lutador, a campanha da Abolição não teria sido o que foi. Foi seu assessor e companheiro. Infelizmente, Joaquim Serra morreu antes que a Abolição fosse proclamada.
A comemoração do Centenário da Abolição ocorreu durante a minha presidência. Não quis fazer festa, mas marcar a data com a minha convicção de que a nossa luta contra a discriminação racial dos negros tinha tido até então apenas manifestações políticas, nas quais não se via nenhuma providência concreta para a sua ascensão social, única fórmula para a sua participação nas decisões nacionais e a extinção da discriminação.
Criei a Fundação Palmares, que até hoje é o grande instrumento a promover esse destino. Por outro lado, como Senador, sem que nunca se tivesse falado sobre isso no Brasil, apresentei no Congresso Nacional o primeiro projeto abrangente sobre cotas raciais e ações afirmativas, dando a oportunidade de os negros terem uma cota de participação não somente no ensino médio e no universitário, mas também em vários setores da sociedade, de modo a que eles ascendessem a camadas mais altas em nosso país. E assim vejo na televisão, nas novelas, em telejornais e em diversos programas a participação do talento negro com seus valores, sua alegria, sua cultura e sua musicalidade, que eles trazem no sangue.
As cotas raciais e a Fundação Cultural Palmares têm ajudado na ascensão social, política e econômica dos negros no Brasil.
O que me inspirou não foi a motivação política, mas a do intelectual que sempre esteve ao lado da luta dos negros e ao lado de Afonso Arinos, que propôs a tipificação da discriminação de raça e cor (Lei Afonso Arinos, Lei nº 1.390/1951). Minha inspiração vinha também do exemplo americano, onde a política de inclusão racial funcionava desde o final da década de 1960.
Aqui no Brasil, iniciamos, em 1971, o movimento para a criação, em 1978, do Dia Nacional da Consciência Negra, homenageando Zumbi dos Palmares, e tornamos a data feriado nacional em 2023/2024, lei sancionada pelo Presidente Lula. Os Estados Unidos iniciaram uma homenagem, em 1968, ao seu grande líder negro assassinado, Martin Luther King Jr., e tornaram a data feriado federal em 1983, com início em 1986.
A comemoração que se fez ontem no Brasil, com o Feriado Nacional da Consciência Negra, é motivo de orgulho para todos nós.
O Brasil é um país mestiço, o que tive a oportunidade de proclamar em discurso nas Nações Unidos. Muitos não compreenderam, envolvidos no espírito da discriminação. Essa diversidade étnico-cultural não deve ser escondida, mas sim celebrada com satisfação.
Isso é um trunfo, e um trunfo nosso, característica do povo do Brasil, cuja alegria veio da África. E isso foi expresso ontem pelo Dia Nacional da Consciência Negra.
Viva!
*************************************
Terra em Transe
Em outra sexta-feira tive a oportunidade de escrever nesta coluna sem qualquer preocupação ou dúvida de que o setor do agronegócio é o mais desenvolvido do nosso país, responsável pelo aumento do nosso PIB, representando o que há de mais moderno no mundo em matéria de pesquisa agrícola e agropecuária, em que o Brasil, com a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, ocupa uma posição de excelência.
Hoje também não tenho dúvida de afirmar que o maior de todos os nossos atrasos decorre da defasagem em ciência e tecnologia. Muitos desses desencontros foram resultado de políticas inadequadas, especialmente da falta de incentivos à aplicação tecnológica da ciência digital, que constitui a materialização prática da ciência.
Agora, com a realização da COP30 — 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima —, em Belém do Pará, ficam mais evidentes as descobertas da ciência sobre as mudanças do regime climático, com o alerta de que o aumento do efeito estufa e da temperatura da Terra estão caminhando para um ponto de não retorno. As enchentes avassaladoras apontam que o desastre ecológico que ameaça nosso planeta já está “mostrando suas unhas”. Enquanto isso se processa, aparecem alguns negacionistas que só nos sugerem como exemplo os pessimistas que Moisés mandou espiar a Terra de Canaã, que com seus relatos atrasaram em 40 anos a travessia do deserto.
Os Estados Unidos, que foram exemplo nestes últimos séculos da construção do regime das liberdades, objetivamente relacionadas nas dez primeiras emendas à Constituição americana, inspiradas por Thomas Jefferson, agora assumem uma posição na qual a democracia está sob ameaça no mundo inteiro. Essa mudança iniciou com o desaparecimento do maior exemplo democrático para dar lugar aos fatos dolorosos que ocorreram em Washington antes da posse de Joe Biden, contabilizando cinco mortos e dezenas de feridos no ataque ao Capitólio, exemplo seguido pelo Brasil em 8 de janeiro de 2023.
Mas não ficou aí. Agora reeleito, o Presidente americano iniciou a desestabilização da economia mundial com uma política de tarifas e como sempre enveredando pela negação da ciência ao não aceitar que o mundo marcha aceleradamente para uma tragédia ambiental. Trump não só não acredita como procura encontrar motivações demagógicas para as verdades comprovadamente frutos de descobertas científicas.
Felizmente os números deste ano parecem apontar para uma inflexão nessa tragédia. Na realidade, tenho recebido da comunidade científica — bastante prestigiada por mim durante o tempo em que fui presidente da República — resultado do trabalho que lá atrás se iniciou: a descoberta do enriquecimento do urânio na fábrica de Aramar, desenvolvido pela nossa Marinha, em que asseguramos a destinação da energia nuclear para fins pacíficos, com aplicação na saúde, na produção de energia etc.
Com ambições de modernidade, tivemos então feitos marcantes na história científica do Brasil: criei o Ministério da Ciência e Tecnologia, dando aos nossos cientistas recurso e prestígio. Para se ter uma ideia, o CNPq concedeu mais bolsas em meu governo do que em todos os seus 34 anos anteriores. Com isso tivemos grandes marcos científicos, como o primeiro reator de pesquisas nucleares, o domínio do enriquecimento do urânio, o primeiro acelerador linear de elétrons, o centro de construção e o primeiro laboratório de testes de satélites, o Laboratório Nacional de Luz Sincronton, o sistema de monitoramento ambiental por satélites, o desenvolvimento de novos materiais, como fibras óticas e cerâmicas de alta resistência, avanços em radar, lasers e tantas outras coisas.
Acreditava eu — e ainda penso da mesma forma — que o mundo do futuro não será de países grandes ou pequenos, mas daqueles que dominarem tecnologias e saberes científicos. A ciência e a tecnologia são tão importantes no processo produtivo contemporâneo quanto (ou até mais do que) os recursos naturais, os equipamentos industriais ou a própria mão-de-obra.
Assim o apoio à comunidade científica deve estar na mesa dos planejadores tanto quanto a infraestrutura e a política econômica. O Brasil, como o grande país que é, não pode jamais ficar no fim da fila dos saberes científicos. Devemos aspirar não somente a participar da inteligência mundial como também a fomentar o desenvolvimento de cérebros que nos assegurem não somente prêmio Nobel, mas uma equipe capaz de caminhar assim como na agricultura, na pecuária, no desenvolvimento de vacinas, em todos os ramos das inovações tecnológicas.
O Brasil não pode abdicar de ser o país do presente e do futuro.
*****************************************
Não à violência
Começo com uma confissão: tenho absoluto horror à violência, que choca as minhas mais profundas convicções. Isso, é claro, é um sentimento que me acompanhou toda a vida. Homem público, tive que reconhecer que o monopólio da força pelo Estado, derivado das fórmulas de Hobbes, é uma condição essencial para, justamente, conter a violência, pois homo hominis lupus est, o homem é o lobo do homem.
Mas a ação do Estado começa com a preservação da vida e dos direitos fundamentais e, para isso, esta tem que ser a visão prioritária de quem age em seu nome. Não adianta ensinar bons modos, técnicas de defesa e ataque etc. se esse ponto essencial não fizer parte do treinamento diário.
Sei que a violência existe desde sempre, mas é possível coibi-la. Quando assumi o governo do Maranhão, já lá vão 60 anos, encontrei presos amarrados por correntes aos antigos troncos, como no tempo da escravidão. Mostrei essas correntes e garanti que nunca mais elas seriam usadas — e elas foram abolidas.
Hoje mal tenho coragem de ver o noticiário. A ideia de que tantos mortos sejam considerados um resultado secundário de uma ação policial, por mais sucesso que tenham tido em seus objetivos iniciais, me deixa atônito. Admitamos, só para argumentar, que todos fossem bandidos. Mas cada um era uma pessoa, um ser humano com família, pais, mulher, filhos, amigos. Como pessoa, como brasileiro, tinha direito às mesmas garantias do artigo 5º da Constituição que tem cada um de nós. E, possivelmente, alguns deles não eram bandidos.
O bandido tem direito a ser julgado e receber a pena proporcional a seu crime. E quem julgou esses bandidos, no calor da ação, resolveu cumprir ali mesmo a pena de morte: mas a pena de morte é vedada na Constituição brasileira. Assim são rasgadas todas as garantias que lhes assegura o Estado de Direito.
O caminho para resolver isso tem sido apontado por ações como a que, há pouco tempo, atacou os braços financeiros de uma organização criminosa sem qualquer morte. Felizmente, também, parece se firmar a convicção de que, tendo o crime organizado se espalhado pelo País, é preciso a coordenação da União para poder ser efetivo o resultado. Ações pontuais são incapazes de afetar a força dessas organizações. Ao mesmo tempo, é preciso criar punições fortes para todo grupo armado — tráfico ou milícia, não se distinguem — que afete a presença efetiva do Estado em qualquer área do Brasil, seja cidade ou floresta.
Dizem que nossas estatísticas de crimes de morte violenta estão caindo. No ano passado tivemos mais de 44 mil mortes, uma queda de 5,4%; mas o número de desaparecidos — grande parte deles são presumivelmente vítimas de morte violenta — subiu 4,9%, passaram de 81 mil. As mortes pela ação do Estado foram mais de 6 mil e constituem 14% das mortes violentas intencionais. Com justiça se considera horrorosa a morte de policiais, dignos de todos os elogios por bravura: eles foram 43 no ano passado. Há, nessas estatísticas, um terceiro problema: não se sabe quantas mortes violentas por esclarecer foram ou não contabilizadas, como é a norma nos últimos anos; antes dessa regra essas representavam um número da ordem de 20% daquelas. Vemos uma situação horripilante quando somamos os 44+81+8 mil casos: temos 133 mil vítimas. Os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram outros pontos chocantes, como a gigantesca proporção de jovens e de pretos, que deveria soar todos os alarmes.
Só para nos situarmos, na atual Guerra da Ucrânia morreram cerca de 30 mil civis, enquanto na Palestina devem ter morrido cerca de 70 mil.
Mas saiamos desses números que, de tão grandes, nos fazem perder a visão humana. Há, em toda essa barbaridade, em toda essa atrocidade, uma outra tragédia: a dos familiares das vítimas. Os pais que choram, as mulheres que se desesperam, os filhos que estão desamparados são faces de dores irreparáveis, de vazios que nunca serão preenchidos. Cada um deles precisa de apoio do Estado, que não lhes garantiu o direito à vida.
Há muitos anos apresentei um projeto de lei para criar um fundo de indenizações às vítimas de violência, a ser suprido inclusive com pagamentos pelos culpados. A mim me parece que é uma lacuna que o País tem que resolver. Joaquim Nabuco tem uma frase que já repeti muitas vezes, pois ela diz tudo. Ele fala do escravizado, mas podemos transpor para os nossos dias: esta questão “versa sobre as aspirações, os sofrimentos, as esperanças, os direitos, as lágrimas, a morte de milhares e milhares de gentes como nós; [e não é] uma questão abstrata, mas concreta, e concreta no que há de mais sensível e mais sagrado na personalidade humana”.
Peço a Nosso Senhor Jesus Cristo, vítima de violência, que morreu para nos ensinar o amor, que ilumine o Brasil.
*************************************************
Meus Romances
Não é de bom-tom tratar de assuntos pessoais em nossas colunas de jornal. Mas não resisto à tentação de abordar o relançamento de três romances meus em São Paulo hoje, 23 de outubro, quando escrevo esta coluna, editados pela Ciranda Cultural, com o selo Principis. Eles, os editores, tiveram um carinho especial com esta publicação, a começar pelas belas capas temáticas criadas para O dono do mar, Saraminda e A duquesa vale uma missa.
É que neste relançamento o objetivo é atingir um público que ainda não conhece este meu outro lado, a minha atividade literária. A minha vida sempre teve duas vertentes, a da política e a da literatura, sem que uma invadisse o campo da outra. Embora minha presença na vida nacional tenha sido marcada pela política, não passou um só dia que eu não tivesse um convite de noivado para a literatura. Foi assim que eu consegui, pela graça do destino e de Deus, na política, chegar a Presidente da República e, na literatura, a membro da Academia Brasileira de Letras, para a qual fui eleito em 1980, sendo hoje o decano daquela Casa, onde entrei nos braços de meus livros de poesia e de contos: Canção Inicial (1954), Maribondos de fogo (1978) e o de contos, Norte das águas, publicado em 1969. Depois veio o Saudades mortas.
Na poesia, fui considerado como um poeta que atingiu o “domínio completo da melodia poética”, e o português João Gaspar Simões — o crítico que apresentou Fernando Pessoa em 1927 — observou no meu Maribondos de fogos a poética genuinamente brasileira, um eu lírico “que os poetas brasileiros, agora, mais do que nunca, estão, finalmente, a fazer seu e bem seu.”
Sobre o meu livro de contos, Norte das águas, alegraram-me as palavras de Léo Gilson, ao dizer que mostrei “um pedaço mais ameno e mais doce do Nordeste que é o Maranhão.”
O romance O dono do mar já foi traduzido em doze línguas, sendo recebido, pela crítica nacional e estrangeira, com grande generosidade. É de Heitor Cony, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Domício Proença, Léo Gilson Ribeiro, grandes escritores e críticos de literatura de nosso país e de notáveis escritores internacionais, como Alain Peyrefitte, autor do best-seller consagrado Quando a China se levantar, o mundo tremerá; Maurice Druon, autor de dois livros marcantes O Menino do dedo verde e Os reis malditos, que disse ser O dono do mar “uma saga sem precedentes na literatura latino-americana”; e Levy Strauss, o grande antropólogo e maior intelectual da Europa do século XX, que disse tratar-se de “obra monumental”. Este livro entrou na Coleção da Gallimard de literatura folio, a maior da Europa, com 2.800 títulos. Dos brasileiros, nela figuram Machado de Assis, Jorge Amado e Guimarães Rosa.
Quando, em 2018, foi editada a minha bibliografia geral e fortuna crítica, foram arrolados 120 títulos. Fiquei surpreso. Nem eu avaliava tantas publicações, com 168 edições, porque muitas das publicações tiveram muitas edições.
Devo confessar que esta vocação de escritor muito me envaidece, porque, como teria dito Napoleão Bonaparte, a política é um destino, ele ocorre circunstancialmente na vida, diferentemente da literatura, que é uma vocação, nasce das qualidades que nos governarão o viver. Não ocorre: nasce. E aguarda uma atitude nossa em resposta a esse chamamento.
Assim, hoje, estaremos na livraria do Shopping Iguatemi autografando livros, revendo amigos e surpreendendo jovens: o velho Sarney feliz, como se estivesse iniciando seus livros, romances de histórias que inventou de pescadores, de garimpeiros e de apaixonados por mulheres retratadas na história dos reinados de França, como no A duquesa vale uma missa.
Com O dono do mar acredito ter realizado uma obra de começo, meio e fim — assim foi apontado pela crítica de muitos países em que foi editado. Já em Saraminda, construí um personagem que domina e fica. Heitor Cony disse que na literatura brasileira tínhamos agora três mulheres: Capitu, Iracema e Saraminda. É exagero, mas dá vaidade.
Em Brasília, também relançaremos esses romances, no dia 11 de novembro, no Salão Negro do Senado Federal. Em seguida, será a vez de São Luís, no dia 5 de dezembro.
E aqui fico, encabulado pelo artigo pessoal, mas feliz — com a sua licença, caro leitor.
A Guerra dos 7 Erros
A Guerra de Gaza teve sempre erros, nenhum acerto, como era de se esperar. Aliás, encontrar uma guerra que não seja resultado de um erro ou que tenha resolvido algum problema é impossível.
O confronto teve como princípio deflagrador claros e brutais erros de avaliação dos terroristas do Hamas naquele ataque de 7 de outubro, assassinando mais de 1.200 pessoas, sequestrando mais de 250 pessoas, além de dezenas de cadáveres levados para objeto de futura permuta, o que agora está ocorrendo.
Julgavam poder vingar as atrocidades cometidas diariamente por israelenses, sob a proteção do governo de Israel, contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia e provar que a tal invulnerabilidade de Israel era falsa, difundindo uma possível fragilidade do Estado judeu e, aproveitando a impopularidade de Netanyahu, acusado de corrupção, disseminar medo no povo, o que levaria a um afastamento deste do Likud, partido da extrema-direita, que mantém o ministro e o atual governo.
Outro monumental erro foi a tragédia que matou Yitzhak Rabin, grande e notável estadista israelense, vítima do assassinato que comoveu o mundo, atingido por um terrorista israelense, em Tel Aviv.
Rabin e Yasser Arafat, o líder da OLP, ambos mortos por terroristas, eram signatários do Tratado de Paz de Oslo, que propunha para o Oriente Médio um Estado Palestino convivendo com o judaico, já existente, aprovado na 2ª Assembleia das Nações Unidas, em 1947.
Mais um erro que mudou o curso da História: a não concretização dessa solução resultou na derrota de Ehud Barak para Ariel Sharon, da extrema-direita israelense, invertendo o caminho israelense para uma paz duradoura com os palestinos, que guardaram — e guardam até hoje — o ressentimento de terem sido retirados de suas terras para dar lugar ao Estado judaico.
Outro terrível erro foi o ataque dos militares egípcios durante uma parada que matou o Presidente do Egito Anwar Sadat, no Cairo; este, signatário do Tratado de Paz de Camp David, de 1978, marcou a primeira vez que um Estado árabe reconheceu a existência de Israel, iniciando a atual configuração política do Oriente Médio.
Pela vingança de Israel decorrente do atentado de 7 de outubro, o povo palestino — sem culpa nenhuma — e os guerrilheiros do Hamas — culpados — pagaram um preço inimaginável em pleno século XXI: 70 mil mortos, destruição quase total de Gaza. E a inadmissível fome usada como arma de guerra, que continua a ceifar vidas num sofrimento que comove o mundo.
Não bastassem tantos erros, cito mais um como fato histórico: o Estado de Israel levou a sua vingança a um extremo tão cruel que conquistou para o país, com o massacre de um povo tão pobre, o isolamento mundial, acusado de ter um objetivo que jamais será alcançado: a extinção do povo palestino! Estes, desde 1948, vivem sua diáspora (a Nakba), com campos de refugiados na Cisjordânia, na Faixa de Gaza, e em países como Jordânia, Síria e Líbano.
Marcando mais um erro apontamos o radicalismo iraniano de não reconhecer o Estado de Israel, uma realidade que não retrocede, e a feitura de uma bomba nuclear.
Em consequência
a decisão desastrosa, que acarretou centenas de mortes no Irã: o bombardeio da usina nuclear de enriquecimento de urânio de Fordow, sob a alegação de que somente os Estados Unidos possuem armamentos capazes de romper montanhas.
Abrindo parêntese nessa análise de uma guerra tão distante de nós, lembro que o nosso continente é o único no mundo que não quer — e não tem! — armas nucleares, graças ao acordo firmado por mim e Raúl Alfonsín, por proposta do Brasil, de acabarmos com as pesquisas nucleares para fins bélicos em nossos países e destiná-las somente para a paz e aplicações científicas para a melhoria nas condições de vida da Humanidade. Tenho absoluto orgulho de ter contribuído, ao lado de Alfonsín, para esse benefício.
Pois no meio de todos esses erros, para surpresa de todos nós, eis que Trump faz uma coisa certa, depois de, aqui para nós, ter feito a grande besteira, uma coisa errada, de taxar o Brasil em 50%. Ele, que foi acusado daquela invasão do Congresso americano, agora, como presidente, atua impedindo o funcionamento do Congresso, brigando com tribunais e provocando retaliações aos Estados governados pelo Partido Democrata, seu adversário.
Na busca do Prêmio Nobel da Paz, como foi acusado pelos seus opositores, teve uma grande vitória comandando e forçando Israel a aceitar o cessar-fogo, o que sem dúvida alguma foi um gesto louvado e aplaudido por gregos e troianos no mundo inteiro, a começar por nós.
Esperamos agora que os acertos abram suas asas sobre o mundo, para alcançarmos aquele desejo de Kant da paz duradoura.
Juntemos nossas orações às propostas de Leão XIV pela Paz entre os homens de boa vontade.
**************************************
Só Beijos
Há duas sextas-feiras, escrevi nesta coluna sobre o encontro entre o Presidente Lula e o Presidente Trump. Ambos se conheceram, se abraçaram e trocaram cortesias no encontro de 38 segundos. A declaração dos dois foi de que o encontro gerou uma química entre eles; química esta que se desdobrou nas semanas seguintes em declarações de simpatia e de amizade, que desembocaram num telefonema de meia hora em videoconferência, combinando um encontro pessoal. Afirmaram que a excelente conversa abriu caminho para o início de negociações para encontrarem uma solução para o problema das taxas altíssimas aplicadas ao Brasil e o término de uma conduta de relações ásperas entre os dois países.
Ouvi de Gilberto Amado, o bom escritor do livro de memórias “Minha mocidade no Recife”, quando eu e ele, em 1961, estávamos na 16ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que as nações não têm sentimentos, e sim interesses. Assim risquemos da nossa compreensão amor-ódio-amizade-carinho ou qualquer manifestação de sentimentos abstratos que as pessoas têm e os países, não. Depois, devido a convivência com muitos diplomatas, descobri que esta conduta não era somente uma frase do Gilberto Amado, mas um ensinamento da diplomacia sobre o relacionamento entre os países, seu objeto maior.
Assim não esperemos que somente palavras possam mover montanhas. Estas estão na geopolítica entre Brasil e Estados Unidos, mas não através dos interesses políticos que o presidente americano possa ter manifestado em favor de um candidato à presidência da República, e sim no que considero o mais profundo obstáculo das relações em atrito nestes últimos meses com os americanos: o Brics. Este, sim, uma demonstração concreta de interesses do Brasil contrários aos dos Estados Unidos — e o Presidente Lula usou uma retórica contundente ameaçando o Tio Sam de acabar com o dólar nas negociações do bloco. Isso é um tiro no coração. Em seguida, o Presidente Trump aplicou a mesma tarifa do Brasil à Índia, o que considero ter o mesmo motivo.
Mas a diplomacia utiliza, como namoro e troca de beijos, as palavras, e estas ainda são poderosas no relacionamento entre ministérios de relações exteriores, órgãos encarregados da retórica sem engajamento, deixando as decisões para as altas cúpulas de todas as nações. Por isso o que temos ouvido depois dos tapas e beijos tem sido somente beijos, sem deixar marca na cueca, mas nem por isso menos significativos do pensamento das chancelarias.
Do longo telefonema entre os presidentes, pouca coisa de essencial transpareceu, apenas declarações de “foi ótimo”: Trump disse que o Presidente do Brasil era um “excelente homem”, um “homem bom”, enquanto Lula, bem vivido e melhor político, ficou na retranca e limitou-se a dizer “A conversa foi boa”.
A coisa começou agora a pegar pela nomeação do secretário Marco Rúbio, que é tido como ideológico de conveniência, como interlocutor do governo americano. Ele tem sido afirmativo, sem papas na língua, dizendo que o Brasil que espere a Lei Magnitsky, aquela que já foi aplicada ao Ministro Alexandre de Moraes por suas posições e seus votos no Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Na linha de interesses e sentimentos, acredito que, como dizia Carlos Lacerda, o interesse é permanente, o sentimento é volátil — e o ódio é fingido. Este está no exclusivo domínio do teatro: é para o público.
Nesta linha de raciocínio, a Índia e o Brasil, que foram no passado solidários aos Estados Unidos e lutaram pela democracia e pelas ideias liberais, parelha da América de Jefferson, na sua difusão da inspiração americana, representantes da liberdade e do “Bill of rights”, formando tropas para lutar em favor desses países, agora estão unidos com China e Rússia no Brics.
Brasil e Índia não podem negociar o Brics, já consolidado, são países em busca da maior participação na política mundial. Daí decorrem os 50%. Nós e a Índia veremos como serão as relações com Europa e Estados Unidos, no presente e no futuro, com uma realidade diferente.
Beijos sim, virgindade nunca.
**********************************
Tapas e beijos
Uma nova maneira de fazer “diplomacia”(!) está sujeita hoje ao estilo de Donald Trump, do bate e assopra, cujo exemplo maior foi o bate-boca com o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que depois do arranca-rabo marchou para um acordo das terras raras cedidas e concedidas aos Estados Unidos, em troca de drones e foguetes.
O caso do Brasil também foi complicado. Trump sofreu imprevistos: a escada rolante do edifício-sede da ONU deixou de funcionar, o que ele rapidamente classificou como sabotagem. E muito mais incômodo: ocorreu a falha do seu teleprompter, uma verdadeira tragédia para quem precisa discursar. Ele aproveitou essa pausa forçada e usou seu tempo para relatar o encontro de 38 segundos com o nosso Presidente Lula. Trump disse ter gostado da conversa e revelou que “rolou uma química” entre eles. Mais tarde, Lula, por sua vez, confessou que também sentiu a mesma “química”.
Segundo a definição do Houaiss, química é o “estudo científico da constituição da matéria, suas propriedades, transformações e as leis que as regem”. Mas não é essa a que rolou entre ambos: foi a “química” da linguagem popular, do surgimento de um clique entre pessoas, difícil de explicar racionalmente, mas sentido de forma intensa. É como se houvesse uma reação espontânea de afinidade, simpatia ou desejo.
Ora, analisando o encontro, afinidade é impossível, os dois frequentam polos opostos: um à esquerda, outro à direita. Então não foi “atração imediata, reação espontânea de afinidade”, pois impossível. A química que rolou, assim, pode estar na área da simpatia e do desejo: simpatia que os dois confessaram sentir um pelo outro e desejo de paz — o que é muito bom para o Brasil e para os Estados Unidos.
Realmente, essa taxa de 50% sobre os nossos produtos foi uma taxa política, e não econômica — a meu ver ligada aos BRICS, à posição firme do nosso Lula em favor de uma moeda para substituir o dólar nas negociações. No mais foi a retórica de que o Brasil deve se aliar mais aos americanos, e nada de chineses.
Ora, nossa política externa tem relação estreita com os Estados Unidos há mais de 200 anos. Foram eles o primeiro país a reconhecer nossa independência, estivemos juntos em duas guerras, enviamos tropas para lutar ao lado deles, deixando sangue de brasileiros em Pistoia, na Itália, com a derrota do Eixo Itália/Alemanha, de Hitler e Mussolini.
A aliança entre Brasil e Estados Unidos foi fundamental para o triunfo dos Aliados na Segunda Guerra. No Nordeste brasileiro foi instalada a base aérea de Parnamirim Field, conhecida como “Trampolim da Vitória”, que foi crucial para a logística militar americana.
Essa aliança se estendeu e aprofundou ao longo dos anos, fortalecendo nossas relações culturais, comerciais e científicas, o que impulsionou grande fluxo de intercâmbios culturais e acadêmicos.
Para concluir, Lula confessou que, após a conversa com Trump, recebeu dele convite para um encontro, o que será, segundo nosso Presidente, um encontro para “o diálogo” pois “há muito o que conversar”, “somos dois homens de oitenta anos”. Vamos ver se depois dessa “química”, eles vão “ficar” — como dizem os moços.
Em relação à Rússia a coisa é mais violenta e envolve um fato muito sério: os dois lados possuem armas nucleares. Um confronto entre esses dois países seria o fim da humanidade, com toda a população do mundo sendo vítima da radiação, como aconteceu com Hiroshima e Nagasaki. Trump disse que a Rússia é um “tigre de papel”, e a Rússia respondeu “Somos um urso verdadeiro”. Aqui espero ter rolado simpatia e desejo. Simpatia como proposta de amizade e desejo como vontade de dialogar, aparar arestas e encontrar um terreno comum para um acordo.
O discurso do Lula nas Nações Unidas foi impecável. A diplomacia brasileira funcionou bem, conduzida pelo nosso Ministro Mauro Vieira. Nosso Presidente brilhou, foi uma excelente presença na tribuna e marcou um gol de placa. Nota 10.
De mais a mais, vamos superar as agressões. Que o mundo seja de beijos e os tapas sejam sepultados e esquecidos.
*******************************************
Liberdade de imprensa, direito do povo
Nossos jornais estão cheios de notícias e fatos que jamais se pensou que seriam publicados. Leio-os e recordo, uma vez mais, o que penso sobre a liberdade de imprensa, como ela foi criada, a que veio e o que ela representa no processo democrático.
No dia em que deixei a Presidência da República, ao me despedir do Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto, os jornalistas vieram me cumprimentar dizendo que, durante o meu governo, tinham desfrutado da mais absoluta liberdade de imprensa que o País já tivera. O correspondente do jornal O Estado de São Paulo, sentado em sua cadeira, disse-me: “Presidente Sarney, digo ao senhor, com absoluta tranquilidade, que passei esses cinco anos gozando de total liberdade e que, durante sua presidência, nem censura pessoal, interna, eu sofri. O senhor fará muita falta ao Brasil.”
Devo fazer um pequeno relato histórico. A liberdade de imprensa ficou cristalizada depois que os Estados Unidos foram estabelecidos, sob a égide da Constituição de 1787, na Convenção de Filadélfia. Alguns Estados americanos se recusaram a ratificar a Carta Constitucional, argumentando que o documento era curto e sucinto, focado apenas nas ideias fundamentais e, portanto, não protegia alguns direitos, como as liberdades individuais, incluindo a de imprensa.
Thomas Jefferson, durante a elaboração da Constituição, atuava como embaixador em Paris e, portanto, não participara do trabalho, mas correspondia-se com frequência com James Madison, expondo as ideias dos filósofos do Iluminismo e defendendo a inclusão na legislação americana da garantia de direitos individuais fundamentais.
Dessa forma, James Madison, o “pai” da Constituição, convencido por Jefferson e adotando essas ideias, liderou o processo para acrescentar ao texto constitucional as dez primeiras emendas, o Bill of Rights, cuja Primeira Emenda garante, explicitamente, a liberdade de imprensa.
A Convenção de Filadélfia fora elaborada por cidadãos americanos que, marcados pela colonização e influenciados pelas instituições inglesas, se inspiraram no modelo do Parlamento Britânico: a Câmara dos Comuns, que representava o povo, e a Câmara dos Lordes.
Durante sua elaboração, sem encontrar um organismo que substituísse na América do Norte a Câmara dos Lordes britânica, depois de grande divergência, conta-se que os delegados decidiram rezar à noite pedindo a proteção de Deus, com absoluto sigilo e total segredo sobre o assunto.
Liderados por Madison, chegaram a um acordo histórico, conhecido como o Grande Compromisso (ou Compromisso de Connecticut), estabelecendo um sistema legislativo bicameral: a Câmara dos Representantes do povo, com representação proporcional à população de cada estado, e o Senado, onde cada estado teria representação igual, com dois senadores, assegurando os mesmos direitos a Estados pequenos e grandes.
Afonso Arinos, ao comentar esse episódio, brincava dizendo que o Senado fora uma inspiração de Deus, porque os membros que o tinham criado na Filadélfia o fizeram depois de uma noite intensa de rezas.
Todos aprovaram esta ideia considerada genial, e Jefferson, com a constituição já votada e pronta, perguntou a Madison: para que serve a instituição da representação dos estados? Madison, então, que estava tomando chá, derrama o líquido da xícara no pires e responde: “Justamente para isto: esfriar. Uma casa representará o povo e a outra, a federação.
Thomas Jefferson, figura notável de grande pensador, apesar de defender a tese de que a imprensa livre era garantia de liberdade, esse mesmo Jefferson fora acusado de contratar um jornalista, na verdade um chantagista, que se chamava James Callender, homem muito virulento — que Joseph Ellis disse ser um Scandal-Monger (tradução livre de espalhador de escândalos) —, para que caluniasse o presidente John Adams.
Mais tarde, esse mesmo caluniador, quando Jefferson se tornou presidente, tentou chantageá-lo pedindo o cargo de diretor dos correios em Richmond, no que não foi atendido. Daí, passou a denunciar Jefferson, tornando públicos sussurros, muitas vezes baseados em boatos e mentiras, entre eles o de que Jefferson tinha por amante a escrava Sally Hemings em sua propriedade, com quem teria muitos filhos. Hoje, sem nenhuma dúvida, graças às inúmeras pesquisas com DNA, em 1998, confirmou-se a linhagem de descendentes de Thomas Jefferson e de Eston Hemings, um dos filhos de Sally.
Controvérsias à parte, voltemos ao argumento utilizado para defender a criação da liberdade de imprensa: já que os congressistas tinham liberdade (a imunidade parlamentar) para falar no Parlamento sem serem responsabilizados, era preciso dar essa mesma liberdade de fala ao povo. Essa liberdade foi garantida com o direito à liberdade de imprensa, ou seja, o direito de o povo usar a imprensa, os jornais e todos os meios de comunicação para falar sem a possibilidade de serem responsabilizados, dentro dos limites da lei. Para essa tarefa, a imprensa, fundamentalmente, seria destinada a questionar e criticar o governo livremente.
Destaco que hoje consta de nossa Constituição essa garantia, com as restrições da lei, da liberdade de fala ao povo. Assim, a Liberdade da Imprensa constitui também um direito do povo, e sem ela não há Democracia.
*****************************************
Tiro no pé
Ao longo da minha vida, tive oportunidade de falar sobre o nosso orgulho de pertencer ao grande continente onde foram desenvolvidas e adaptadas — na América, nos Estados Unidos — as ideias sobre governo e direitos individuais que formaram a moderna democracia, fundamentada na liberdade.
As Nações Unidas surgiram sob a influência de Roosevelt para substituir a Liga das Nações e enfrentar a Segunda Guerra Mundial. Depois dela os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma nova ordem mundial consagrando seus valores democráticos, em que eles exerciam sua liderança. Então foram criados a ONU e o seu sistema com o objetivo de assegurar a paz mundial.
O ideário do multilateralismo passou pela criação, em Breton Woods, do sistema monetário internacional, com o FMI e o Banco Mundial, destinados a assegurar a estabilidade econômica e o desenvolvimento mundial.
Ao mesmo tempo, a Guerra Fria trouxe o grande confronto com a União Soviética – URSS, que desejava estabelecer uma ordem mundial baseada no marxismo-leninismo. O confronto entre capitalismo e comunismo explodiu em guerras como a das Coreias, a do Vietnã e outros conflitos localizados, especialmente no Oriente Médio, na América Latina. Um caso especial foi o de Cuba, que empolgou a juventude mundial.
De um e de outro lado da Guerra Fria, por todo o mundo, continuou o gosto dos militares pelo poder com golpes com que estabeleceram ditaduras.
Tudo isso me levou a pensar no que teria sido do mundo com as ditaduras de Hitler e Mussolini com suas ideias radicais — exemplo maior foi a “limpeza étnica” que levou ao Holocausto.
É uma lembrança inevitável quando Trump ataca as fundações da democracia americana, atacando a constituição e os estados, ferindo os direitos individuais mais básicos — e resolve sacudir o mundo com ameaças capazes de destruir a ordem mundial de que eram os líderes, causando estarrecimento geral e grande desestabilização.
A pergunta é: que tipo de regímen vai surgir com a renúncia americana de coordenar a ordem mundial? Reagindo à explosão tarifária imposta pelo Presidente Trump, na reunião da cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai – SCO, realizada em Tianjin, o líder chinês Xi Jinping propôs a iniciativa de uma nova governança global, promovendo um sistema mais justo e reacional.
Essa Organização, liderada pela China, propõe essa nova ordem baseada na soberania dos países, no respeito à carta das Nações Unidas, na adoção do multilateralismo como uma força de estabilização para esse mundo turbulento. Também pregaram Xi Jinping e a SCO a cooperação em setores como energia e inteligência artificial.
Claramente, a reunião de Xangai, sem explicitamente dizer isso, propõe a substituição da liderança dos EUA pela da China, o que significa atingir o que Trump pregou, o “America First”. O abalo mundial causado pela América ao abdicar da pregação dos seus ideais democráticos e ameaçar países aliados com as tarifas que estabeleceu provoca inevitavelmente a reação de antigos aliados como União Europeia, México, Canadá, Brasil, Colômbia, Índia e tantos outros países.
A consequência óbvia é a união desses países para se defenderem com tentativas de estabelecer nova ordem fora da influência dos Estados Unidos. No nosso caso, não podemos deixar de pensar no fortalecimento do BRICS, latente na reunião de Xangai.
Os líderes dos países fundadores daquela Nova (agora Velha) Ordem Econômica Mundial devem estar tremendo em seus túmulos, vendo que aquilo que os Estados Unidos levantaram como ideais agora estão abalados em seu próprio solo diante desse outsider da política, cujos rumos, como o tiroteio tarifário, não se sabe qual direção tomarão.
Nesse momento o que se vê é um clima de instabilidade, perplexidade e indecisão, que todo mundo enxerga como um desastre interno, uma mudança de governança global e a instabilidade mundial.
Desorientada pelo que o Presidente Trump faz do país com sua política, que contraria as promessas feitas, hoje a América sabe apenas que sua postura, de uma forma ou de outra, abalou a ordem, atemorizou a população e causou instabilidade. Pode-se dizer que ele deu um “tiro no pé”.
************************************