José Sarney

Liberdade de imprensa, direito do povo

 

Nossos jornais estão cheios de notícias e fatos que jamais se pensou que seriam publicados. Leio-os e recordo, uma vez mais, o que penso sobre a liberdade de imprensa, como ela foi criada, a que veio e o que ela representa no processo democrático.

 

No dia em que deixei a Presidência da República, ao me despedir do Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto, os jornalistas vieram me cumprimentar dizendo que, durante o meu governo, tinham desfrutado da mais absoluta liberdade de imprensa que o País já tivera. O correspondente do jornal O Estado de São Paulo, sentado em sua cadeira, disse-me: “Presidente Sarney, digo ao senhor, com absoluta tranquilidade, que passei esses cinco anos gozando de total liberdade e que, durante sua presidência, nem censura pessoal, interna, eu sofri. O senhor fará muita falta ao Brasil.”

 

Devo fazer um pequeno relato histórico. A liberdade de imprensa ficou cristalizada depois que os Estados Unidos foram estabelecidos, sob a égide da Constituição de 1787, na Convenção de Filadélfia. Alguns Estados americanos se recusaram a ratificar a Carta Constitucional, argumentando que o documento era curto e sucinto, focado apenas nas ideias fundamentais e, portanto, não protegia alguns direitos, como as liberdades individuais, incluindo a de imprensa.

 

Thomas Jefferson, durante a elaboração da Constituição, atuava como embaixador em Paris e, portanto, não participara do trabalho, mas correspondia-se com frequência com James Madison, expondo as ideias dos filósofos do Iluminismo e defendendo a inclusão na legislação americana da garantia de direitos individuais fundamentais.

 

Dessa forma, James Madison, o “pai” da Constituição, convencido por Jefferson e adotando essas ideias, liderou o processo para acrescentar ao texto constitucional as dez primeiras emendas, o Bill of Rights, cuja Primeira Emenda garante, explicitamente, a liberdade de imprensa.

 

A Convenção de Filadélfia fora elaborada por cidadãos americanos que, marcados pela colonização e influenciados pelas instituições inglesas, se inspiraram no modelo do Parlamento Britânico: a Câmara dos Comuns, que representava o povo, e a Câmara dos Lordes.

 

Durante sua elaboração, sem encontrar um organismo que substituísse na América do Norte a Câmara dos Lordes britânica, depois de grande divergência, conta-se que os delegados decidiram rezar à noite pedindo a proteção de Deus, com absoluto sigilo e total segredo sobre o assunto.

 

Liderados por Madison, chegaram a um acordo histórico, conhecido como o Grande Compromisso (ou Compromisso de Connecticut), estabelecendo um sistema legislativo bicameral: a Câmara dos Representantes do povo, com representação proporcional à população de cada estado, e o Senado, onde cada estado teria representação igual, com dois senadores, assegurando os mesmos direitos a Estados pequenos e grandes.

 

Afonso Arinos, ao comentar esse episódio, brincava dizendo que o Senado fora uma inspiração de Deus, porque os membros que o tinham criado na Filadélfia o fizeram depois de uma noite intensa de rezas.

 

Todos aprovaram esta ideia considerada genial, e Jefferson, com a constituição já votada e pronta, perguntou a Madison: para que serve a instituição da representação dos estados? Madison, então, que estava tomando chá, derrama o líquido da xícara no pires e responde: “Justamente para isto: esfriar. Uma casa representará o povo e a outra, a federação.

 

Thomas Jefferson, figura notável de grande pensador, apesar de defender a tese de que a imprensa livre era garantia de liberdade, esse mesmo Jefferson fora acusado de contratar um jornalista, na verdade um chantagista, que se chamava James Callender, homem muito virulento — que Joseph Ellis disse ser um Scandal-Monger (tradução livre de espalhador de escândalos) —, para que caluniasse o presidente John Adams.

 

Mais tarde, esse mesmo caluniador, quando Jefferson se tornou presidente, tentou chantageá-lo pedindo o cargo de diretor dos correios em Richmond, no que não foi atendido. Daí, passou a denunciar Jefferson, tornando públicos sussurros, muitas vezes baseados em boatos e mentiras, entre eles o de que Jefferson tinha por amante a escrava Sally Hemings em sua propriedade, com quem teria muitos filhos. Hoje, sem nenhuma dúvida, graças às inúmeras pesquisas com DNA, em 1998, confirmou-se a linhagem de descendentes de Thomas Jefferson e de Eston Hemings, um dos filhos de Sally.

 

Controvérsias à parte, voltemos ao argumento utilizado para defender a criação da liberdade de imprensa: já que os congressistas tinham liberdade (a imunidade parlamentar) para falar no Parlamento sem serem responsabilizados, era preciso dar essa mesma liberdade de fala ao povo. Essa liberdade foi garantida com o direito à liberdade de imprensa, ou seja, o direito de o povo usar a imprensa, os jornais e todos os meios de comunicação para falar sem a possibilidade de serem responsabilizados, dentro dos limites da lei. Para essa tarefa, a imprensa, fundamentalmente, seria destinada a questionar e criticar o governo livremente.

 

Destaco que hoje consta de nossa Constituição essa garantia, com as restrições da lei, da liberdade de fala ao povo. Assim, a Liberdade da Imprensa constitui também um direito do povo, e sem ela não há Democracia.

 

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Tiro no pé

 

Ao longo da minha vida, tive oportunidade de falar sobre o nosso orgulho de pertencer ao grande continente onde foram desenvolvidas e adaptadas — na América, nos Estados Unidos — as ideias sobre governo e direitos individuais que formaram a moderna democracia, fundamentada na liberdade.

 

As Nações Unidas surgiram sob a influência de Roosevelt para substituir a Liga das Nações e enfrentar a Segunda Guerra Mundial. Depois dela os Estados Unidos conseguiram estabelecer uma nova ordem mundial consagrando seus valores democráticos, em que eles exerciam sua liderança. Então foram criados a ONU e o seu sistema com o objetivo de assegurar a paz mundial.

 

O ideário do multilateralismo passou pela criação, em Breton Woods, do sistema monetário internacional, com o FMI e o Banco Mundial, destinados a assegurar a estabilidade econômica e o desenvolvimento mundial.

 

Ao mesmo tempo, a Guerra Fria trouxe o grande confronto com a União Soviética – URSS, que desejava estabelecer uma ordem mundial baseada no marxismo-leninismo.  O confronto entre capitalismo e comunismo explodiu em guerras como a das Coreias, a do Vietnã e outros conflitos localizados, especialmente no Oriente Médio, na América Latina. Um caso especial foi o de Cuba, que empolgou a juventude mundial.

 

De um e de outro lado da Guerra Fria, por todo o mundo, continuou o gosto dos militares pelo poder com golpes com que estabeleceram ditaduras.

 

Tudo isso me levou a pensar no que teria sido do mundo com as ditaduras de Hitler e Mussolini com suas ideias radicais — exemplo maior foi a “limpeza étnica” que levou ao Holocausto.

 

É uma lembrança inevitável quando Trump ataca as fundações da democracia americana, atacando a constituição e os estados, ferindo os direitos individuais mais básicos — e resolve sacudir o mundo com ameaças capazes de destruir a ordem mundial de que eram os líderes, causando estarrecimento geral e grande desestabilização.

 

A pergunta é: que tipo de regímen vai surgir com a renúncia americana de coordenar a ordem mundial? Reagindo à explosão tarifária imposta pelo Presidente Trump, na reunião da cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai – SCO, realizada em Tianjin, o líder chinês Xi Jinping propôs a iniciativa de uma nova governança global, promovendo um sistema mais justo e reacional.

 

Essa Organização, liderada pela China, propõe essa nova ordem baseada na soberania dos países, no respeito à carta das Nações Unidas, na adoção do multilateralismo como uma força de estabilização para esse mundo turbulento. Também pregaram Xi Jinping e a SCO a cooperação em setores como energia e inteligência artificial.

 

Claramente, a reunião de Xangai, sem explicitamente dizer isso, propõe a substituição da liderança dos EUA pela da China, o que significa atingir o que Trump pregou, o “America First”. O abalo mundial causado pela América ao abdicar da pregação dos seus ideais democráticos e ameaçar países aliados com as tarifas que estabeleceu provoca inevitavelmente a reação de antigos aliados como União Europeia, México, Canadá, Brasil, Colômbia, Índia e tantos outros países.

 

A consequência óbvia é a união desses países para se defenderem com tentativas de estabelecer nova ordem fora da influência dos Estados Unidos. No nosso caso, não podemos deixar de pensar no fortalecimento do BRICS, latente na reunião de Xangai.

 

Os líderes dos países fundadores daquela Nova (agora Velha) Ordem Econômica Mundial devem estar tremendo em seus túmulos, vendo que aquilo que os Estados Unidos levantaram como ideais agora estão abalados em seu próprio solo diante desse outsider da política, cujos rumos, como o tiroteio tarifário, não se sabe qual direção tomarão.

 

Nesse momento o que se vê é um clima de instabilidade, perplexidade e indecisão, que todo mundo enxerga como um desastre interno, uma mudança de governança global e a instabilidade mundial.

 

Desorientada pelo que o Presidente Trump faz do país com sua política, que contraria as promessas feitas, hoje a América sabe apenas que sua postura, de uma forma ou de outra, abalou a ordem, atemorizou a população e causou instabilidade. Pode-se dizer que ele deu um “tiro no pé”.

 

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Mulheres em alta

 

Apoiei a luta das mulheres pela ascensão social e participação nas altas decisões nacionais, como o fiz com as reivindicações de outras minorias. Assim poderiam tomar parte na História contemporânea do País.

 

O movimento feminista vem lutando para que as mulheres tenham os mesmos direitos dos homens: votar, trabalhar e até ter acesso à educação. As restrições a esses direitos marcaram sempre um tratamento de inferioridade ao gênero.

 

Ao longo de sua luta, desde a antiguidade, passando pelo Iluminismo, as mulheres tiveram muitas e heroicas lutadoras, como Olympe de Gouges (Marie Gouze), que, durante a Revolução Francesa, levantou a bandeira da igualdade feminina e, em razão disso, foi guilhotinada. Ela escreveu uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne), em que mostrava a diferença brutal entre os direitos, os ideais de liberdade e a exclusão feminina. Naqueles anos e nos que se seguiram, durante os séculos XIX e XX, as mulheres mantiveram sua luta e conseguiram algum sucesso. Hoje a luta se concentra no direito a salários iguais.

 

Fui pioneiro na luta pelos avanços dos direitos das minorias desde que assumi a Presidência da República, criando o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, para o qual chamei a grande Ruth Escobar. Ao mesmo tempo, eu me preocupava com a proteção dos deficientes e a igualdade racial. O que eu visava principalmente era a ascensão social dessas minorias, uma vez que o que mais nos chocava, e era evidente, era a ausência de mulheres e de representantes desses grupos no comando e nas decisões nacionais, como deve ser na vida pública em uma democracia, que deve contar com a participação das mulheres, de negros e indígenas, assim como de seus descendentes.

 

Em pronunciamento, em 2001, no plenário do Senado Federal, eu já pedia a urgência da Casa para este assunto sempre mais do que urgente: o direito de minorias. Buscando alcançar este objetivo, eu tinha apresentado, em 1999, projeto de lei estabelecendo as cotas raciais.

 

O problema da desigualdade sempre me preocupara. Assim, quando Presidente da República, consegui aprovação da Lei 7853/89, que se tornou referência internacional no apoio às pessoas portadoras de deficiência, e criei a Fundação Palmares, dedicada à ascensão social da raça negra. O que eu desejava era alcançar o que a ideia das cotas alcançara nos EUA, onde negros, deficientes e, sobretudo, mulheres já ocupavam os cargos de comando antes só ocupados por homens.

 

Hoje, no Brasil, segundo dados disponíveis até 2024, 38% dos cargos de alta liderança do Executivo Federal, incluindo secretarias executivas, presidências de autarquias e fundações estão ocupados por mulheres. São ainda ocupados por mulheres os cargos de Ministra do Planejamento, da Igualdade Racial, da Gestão e Inovação, do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia e também do Ministério das Mulheres. E a Presidência do Banco do Brasil, um dos maiores do País, hoje é ocupada por uma mulher.

 

No Congresso Nacional, na Câmara, em 2024, 18% dos deputados eram mulheres e, no Senado, 15% — números certamente muito baixos, mas acredito que afirmativos da conquista das lutas femininas pela participação na política e na Administração Pública.

 

Como Senador, presenciei a revolução no Senado com a eleição da primeira Senadora da República, Eunice Michiles, em 1979, mulher que teve um grande desempenho nos trabalhos da Casa.

 

Não posso esquecer o quanto representou também na luta das mulheres a presença de minha filha, Roseana Sarney, a primeira mulher a ocupar a chefia de um Executivo Estadual, no Maranhão, que ela ocupou durante 4 mandatos, intercalados, exercendo uma liderança popular e política muito forte até hoje.

 

Não podemos deixar de citar o marco histórico na luta das mulheres com Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar a Presidência da República, com um governo em que ela tomou grandes decisões e serviu de inspiração para que outras mulheres tenham a ambição de comandar o País.

 

Assim, creio que o movimento feminista no Brasil — a luta das brasileiras por seus direitos — pode se considerar exitoso, pois as mulheres participam das decisões nacionais e comandam grandes empresas no setor público e no setor privado.

 

Quero assim dizer que me orgulho de minha participação na luta em favor da ascensão social das minorias raciais, de pessoas com deficiência, bem como da forte presença das mulheres na vida nacional, onde elas estão se afirmando cada vez mais pelo seu talento, pela sua grande capacidade de luta, sua inteligência e cultura.

 

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Casa Branca, a busca da Paz

 

Nós, brasileiros, não temos motivo para ter qualquer simpatia por Donald Trump, que tem adotado uma política de confronto com o Brasil, impondo taxas impagáveis, cuja consequência não é outra senão atingir empresas brasileiras e até mesmo algumas americanas aqui instaladas, que participam do desenvolvimento nacional. A balança comercial entre nossos países favorece os Estados Unidos, superavitária para eles. Não há, portanto, qualquer motivação para essa investida do presidente americano, que esqueceu nossa tradição de amizade.

 

Duzentos anos de nossas relações diplomáticas mostram a solidariedade do Brasil aos Estados Unidos, cujo ponto mais alto foi a nossa participação em duas guerras mundiais ao seu lado, juntando o nosso sangue ao sangue norte-americano na defesa da democracia e contra a tirania.

 

Outro dia escrevi sobre o quanto era alarmante para a humanidade essa confrontação de hoje, em que, no lugar da Alemanha, temos a Rússia e os americanos fazendo o jogo da disputa com ameaças nucleares, o que significaria liquidar com a nossa Terra.

 

Tive a oportunidade de ressaltar o quanto de preocupação eu sinto toda vez que surgem ameaças de uso de armas nucleares com seus vetores, tendo como exemplo os foguetes intercontinentais e a busca de posições estratégicas de ambas as potências.

 

Hoje venho enfatizar que foi muito positivo o esforço do Presidente dos EUA, Donald Trump, e dos representantes dos países europeus — Alexander Stubb, Presidente da Finlândia; Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia; Keir Starmer, Primeiro-Ministro do Reino Unido; Emmanuel Macron, Presidente da França; Giorgia Meloni, Primeira-Ministra da Itália; Friedrich Merz, Chanceler da Alemanha; Ursula Van Der Lyen, Presidente da Comissão Europeia e Mark Rutte, Secretário-Geral da OTAN —, que se reuniram na Casa Branca, em Washington, para discutir a paz na Ucrânia, pois todos consideram uma ameaça à paz no mundo a guerra nesse país, porque, inevitavelmente, a tendência seria estendê-la a toda Europa, e da Europa ao mundo inteiro, resultando em uma terceira guerra mundial. Fica pendente o problema de anexação do Donbas, desejada pelos russos.

 

Lembremos que a Segunda Guerra Mundial começou seu último ponto explosivo quando a Alemanha invadiu a Polônia, com a reação imediata de França e Reino Unido (Inglaterra) e, mais tarde, de outros países, Bélgica e Holanda, formando os Aliados; depois, após o ataque japonês, receberam a adesão dos Estados Unidos, estendendo a aliança ao mundo inteiro, inclusive com a declaração de guerra às potências do Eixo.

 

Devemos recordar que, naquela época, o Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, Neville Chamberlain, tentara de todas as maneiras evitar a guerra, inclusive cedendo a pautas quase inegociáveis, como a revisão do Tratado de Versalhes, que a Alemanha contestava como opressivo, pois estabelecia o pagamento de indenizações de guerra consideradas extorsivas, o não rearmamento e muitas outras medidas que realmente sufocavam a restauração daquele país; pior, concordaram com a invasão e anexação dos Sudetos, parte da Tchecoslováquia que os alemães diziam ser historicamente parte de seu território. Isso não impediu que Hitler reconstruísse um poderoso exército com equipamentos ultramodernos que espantaram o mundo, como as divisões Panzer, e, posteriormente, invadisse a Polônia, culminando no início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939.

 

Hoje a situação tem alguma semelhança com aquela, pois as motivações da Rússia são as mesmas da antiga Alemanha de Hitler: ameaças à sua segurança interna. A História sempre se repete com outras roupagens, mas, no fundo, são invocadas as mesmas motivações.

 

É nesse clima e com essa visão do passado, do presente e do que pode ser um futuro é que podemos olhar de maneira positiva o gesto do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, quando, em um processo de diplomacia muito difícil e trabalhoso, consegue reunir países europeus e a OTAN, justamente apreensivos com a Guerra da Ucrânia, e com eles estabelecer passos para encontrar-se a paz no continente, já que, em Israel, a obsessão do Netanyahu mantém essa guerra infernal que revolta o mundo inteiro, em que até a fome é usada como arma de guerra.

 

O slogan adotado na reunião entre Trump e Putin, no Alasca — Pursuing Peace: Buscando a Paz —, já dizia que não se tratava de coisa fácil, pois implicava uma busca daquilo que é tão difícil: a Paz. Paz que não somente seja a ausência de guerra, mas também a aspiração milenar de um entendimento fraterno e pacífico entre os homens, uma convivência baseada nos ideais dos direitos humanos e no respeito à liberdade e à soberania de todos os países.

 

Portanto, devemos apoiar gestos dessa natureza e desejar que eles prossigam com determinação e idealismo e que sejam eficazes não só para o presente, como também para assegurar aquilo que Kant pregava: uma Paz Duradoura. Esse é o significado da atuação da Casa Branca.

 

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O Anjo Bom do Brasil

 

Conheci Irmã Dulce no primeiro ano de meu governo, em 1985, quando fui à Bahia. Um dos primeiros compromissos de meu programa foi uma visita à OSID – Obras Sociais Irmã Dulce, uma organização que ela formara para exercer a caridade maior, marca de sua vida e sua destinação. Hoje uma das maiores obras filantrópicas do País, se não a maior, distribuindo assistência aos mais pobres e mais necessitados.

 

Sua figura lendária já era uma referência de missionária, que desde moça, aos 19 anos — antes disso, aos 13 anos, fora recusada em um convento por ser considerada muito jovem —, ingressara na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, onde não foi abrigada, mas, sim, abrigou a Congregação. Em vez de ser missionária da Ordem, a Ordem é que foi sua missionária, porque a Ordem ganhou visibilidade e expressão com sua presença e seu trabalho.

 

Costuma-se comparar Irmã Dulce à Madre Teresa de Calcutá, na Índia, onde também a pobreza é uma mancha e uma marca significativa. Lá o problema é tão dramático que chega a situações inacreditáveis, como a das crianças que pedem esmolas nas calçadas e escadarias das mesquitas e, por hereditariedade, têm suas pernas fraturadas, porque aleijadas podem continuar a exercer a ius mendicandinesse espaço trágico, que humilha o gênero humano.

 

Irmã Dulce, a meu ver, é ainda maior que Madre Teresa de Calcutá, pois foi destinada por Deus a enfrentar corações duros e mentes apagadas que lhe dificultaram o exercício da caridade: um dia, quando pedia esmolas para seus pobres, um homem cuspiu em suas mãos, e ela respondeu, reagindo àquele insulto com bondade dizendo: “Esse cuspe é para mim. Agora, quero que o senhor me dê a ajuda de que os miseráveis estão necessitando.”

 

Essa era Irmã Dulce.

 

Quando nos olhamos pela primeira vez, tive a sensação de que estava imantado pela sua irradiação de santidade, que profundamente me tocava. Via naquela mulher, esquálida e sofrida, um instrumento de Deus na Bahia, onde acolhia os doentes, miseráveis e mendigos das ruas, abrigando-os onde podia. Levada pelo seu espírito forte e por sua determinação, uma vez chegou a colocar 70 doentes onde era o galinheiro do Convento Santo Antônio, transformando o galinheiro em albergue, já que todos os outros espaços do seu ambulatório estavam ocupados por outros necessitados, recolhidos da pobreza.

 

Assim, senti que entrava pelos meus olhos a aura de um ser diferente, iluminado por Deus, para cumprir na Terra uma missão divina — a poucos o Criador escolhe para agir em Seu nome a favor da Humanidade. Não tive dúvida de que estava em frente de uma santa.

 

Passei a amar Irmã Dulce com todas as forças da minha personalidade. E coloquei-me à sua disposição para ajudar na sua obra. Em mais dois ou três encontros, dei-lhe acesso ao telefone vermelho do gabinete — de exclusiva comunicação com meus ministros militares, usado apenas em caso de extrema gravidade e urgência, a qualquer momento e a qualquer hora.

 

Disse-lhe que, em momentos de dificuldade, ela me chamasse, comparando o seu chamado ao mais alto de urgência nacional.

 

Ela não abusou. Pouquíssimas vezes me chamou, somente em momentos em que ela não tinha mais em que se segurar, e eu a atendi sempre, buscando a solução do seu pedido.

 

Irmã Dulce já era reconhecida na Bahia e tornei-me seu devoto, sabendo que era um ser extraordinário.

 

Ontem, 13 de agosto, foi o dia escolhido como seu dia quando se tornou santa, recebendo a denominação de Santa Dulce dos Pobres.

 

Eu estava nessa cerimônia em Roma, no Vaticano, sentado a poucos metros de onde o Papa Francisco celebrava a missa da sua canonização. Nesse tempo eu já não era mais presidente da República, mas ocupava a importante posição de seu devoto.

 

Sentei-me ao lado do Ministro Toffoli, que ali também, como presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, estava presente.

 

Deixei para hoje, dia desta coluna, que é publicada também no meu Instagram, para prestar à Santa Dulce mais uma vez a homenagem do meu amor, do meu carinho, da minha fidelidade e a minha devoção pela força que teve na Terra, pedindo que também a tenha onde estiver, em companhia de Deus.

 

Quando Irmã Dulce estava muito doente, já perto de sua morte, fui visitá-la. Ela dormia numa cadeira, sem poder mais ficar na cama: ajoelhei-me e beijei seus pés.

 

Irmã Dulce tem-me ajudado em todos os momentos em que a ela me socorri, porque ela também me deu seu telefone vermelho para chamá-la: basta invocá-la em momentos de oração.

 

No dia em que deixei a presidência, esperando ser vaiado na descida da rampa do Planalto pela multidão que ali se encontrava, composta de adversários meus, tirei um lenço branco do bolso e balancei, acenando e me despedindo, como realmente estava. Essa mesma multidão que ali estava para vaiar-me começou a aplaudir. Sei que a meu lado, promovendo essa mudança milagrosa, estava a mão de Santa Dulce — que ali não era somente dos pobres, mas também dos devotos que a ela se socorrem.

 

Neste momento de tantas crises e dificuldades que o País atravessa, devemos fazer a nossa parte e invocar, não o Anjo Bom da Bahia, mas o Anjo Bom do Brasil, a nossa Santa Dulce dos Pobres.

 

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Nós, noves fora

 

Com a maior satisfação tenho a consciência de que participei com Raul Alfonsín, a quem sempre reverencio, da exclusão do Brasil e da América do Sul da corrida nuclear mundial, a mais fatal de todas as corridas, enquanto existir na face da Terra uma arma nuclear.

A declaração mais séria que presenciamos nessa desbragada guerra de palavras a que estamos assistindo foi para mim a declaração do ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, porta-voz do Sr. Putin para declarações dessa natureza, ameaçando os EUA com o arsenal nuclear russo. Por sua vez, o sempre irreverente Trump desloca dois submarinos nucleares, portadores de bombas atômicas, para posição estratégica em direção ao seu inimigo nuclear. Ambos devem saber que tal confronto é impossível porque seria não só o desaparecimento deles como de grande parte do mundo. Nós sabemos que essas potências — Rússia e USA — possuíam Estados Maiores que não deixariam esses irresponsáveis fazer coisas como essa de deflagrar um confronto, mas a situação interna dos dois países hoje saiu das mãos dos militares e depende apenas da vontade dos dois presidentes. Assim, o que nos preocupa é que essa retórica está indo num crescendo que pode fugir do controle.

Essa troca de ameaças, por coincidência, ocorre quando o mundo relembra, neste 6 agosto, o 80º Aniversário da Tragédia de Hiroshima, em que morreram 140 mil pessoas e outras tantas sobreviventes foram atingidas pela radiação, dando sinal do que ocorrerá com a humanidade quando forem lançadas as oito mil bombas que estão armazenadas pelas duas potências adversárias. A de Hiroshima era uma bomba pequena e a primeira do mundo. Calculemos o que serão as atuais de hidrogênio e com capacidade de destruição incalculáveis!

Lembremos o episódio dos foguetes russos em Cuba, ao tempo de Kennedy, em outubro de 1962. Estivemos à beira de um confronto. Os americanos não poderiam aceitar a ameaça de armas atômicas russas a 90 milhas do seu território. Então, depois de longa negociação, os russos retiraram essas armas e em compensação os EUA ficaram obrigados a não invadir Cuba, o que respeitam até hoje, e sofreram a pregação cubana da Revolução, mobilizando movimentos populares e outras manifestações. Mas o acordo foi assinado por Kruschev e Kennedy.

Agora tenho que relatar mais uma vez que Brasil e Argentina e toda a América do Sul somos a única região da Terra fora da corrida nuclear, que já vimos estar sendo ampliada, com a Coreia do Norte, com outro dirigente fora da curva, Kim Jong-Un; o Paquistão e a Índia, e, por último — depois de cancelar o acordo internacional de supervisão nuclear —, a incursão americana no Irã, com o bombardeio da usina nuclear de Fordow, para evitar que mais um perigoso país tenha uma arma tão poderosa numa área tão radicalizada pela separação religiosa e política.

Quando assumi a presidência do Brasil, a única área que eu tinha total liberdade de agir era a da política externa, pois esta não fazia parte dos compromissos assumidos na política interna. Assim, eu me preparei para que no primeiro encontro com Alfonsín, em Foz do Iguaçu e mais tarde na cidade argentina de Bariloche, ele fizesse a proposta de acabar com aquilo que alguns setores militares de nossos países queriam: uma bomba nuclear. Ao contrário, decidimos promover uma política de aproximação de nossos país, o que foi feito, o que hoje é o Mercosul.

Alfonsín saiu de Itaipu tendo visitado a nossa grande Hidroelétrica, o que lhe custou grandes censuras do Almirante Rosas, líder da corrente que achava ser nossa usina uma “bomba de água” que iria destruir Buenos Aires (pensamento louco!). Essa posição do nosso irmão argentino custou ao grande presidente Raul Alfonsín, excepcional estadista das Américas, duas rebeliões internas e muitos problemas. Mas ele, como eu, estávamos com os olhos plantados na humanidade, em nossos povos. Assim, hoje, pode-se dizer, com o título deste artigo — invocando a fórmula matemática, noves fora, zero —, que estamos livres de qualquer confronto nuclear. Mas isso não nos livra de lutar contra as armas nucleares, em qualquer lugar do mundo.

Outro dia uma funcionária de minha casa disse-me ao ouvir a notícia do deslocamento do submarino de Trump: “Doutor Sarney, graças a Deus estamos fora dessa.” Eu lhe respondi: “Sim, e eu tenho orgulho de ter ajudado a tirar o Brasil dessa situação.” E fechei: “Com ajuda divina e do Presidente Alfonsín, da Argentina.”

Graças a Deus!

 

A Paz Contigo

 

O mundo vive uma crise de identidade. Nós, que vivemos estes tempos, estamos sendo submetidos a presenciar o encontro de civilizações, não o fim da história, aquilo que Francis Fukuyama disse quando achou que chegaríamos a uma etapa em que somente dois sistemas prevaleceriam com o decorrer do tempo: o sistema democrático e o sistema de liberdade econômica. Então, diante desse quadro, o que é esta inquietação de viver perigosamente que estamos vendo?

Na minha opinião, com olhos de análise e de observação, já passamos pela civilização da oralidade, em que a história se perpetuava em nossa memória através, principalmente, dos mais velhos. Depois, com a descoberta da escrita, pela civilização da eternidade da palavra escrita e pela proliferação desta pela imprensa.

Agora, estamos em pleno vendaval de uma civilização nova que atinge a forma de pensar: a civilização digital, a era dos computadores, já no desenvolvimento da inteligência artificial, que não sabemos aonde vai chegar, com a ameaça de revoltar-se contra seus criadores, como na ficção cientifica, em que os algoritmos podem fazer e inventar qualquer coisa. Na guerra entre o livro digital e o livro em papel já constatamos a morte das enciclopédias, pois nenhuma delas resistiu à realidade da Wikipédia. No campo da abstração não sabemos mais onde existe a verdade e a mentira, o certo e o errado, a privacidade e os direitos de liberdade, as narrativas que destroem a verdade verdadeira. E tudo está sob ameaça, e todos agem com o espírito de contestação e daí é um pequeno passo para o desamor e o ódio

O Brasil está no rabo desse foguete. Eu, favorecido pela bondade de Deus com vida longa, presenciei esse processo. Na minha experiência pessoal, a política era um terreno de cavalheiros em que havia adversários, mas poucos se consideravam inimigos.

A raiva e o ódio não faziam parte da política e do relacionamento político. As ideologias de esquerda organizada abandonaram quase todas as práticas radicais, deixando-as com os terroristas, niilistas e anarquistas, e hoje os extremistas são políticos de extrema direita, no Brasil e no mundo, que, não mais como adversários, mas como inimigos, seguem a teoria  leninista-stalinista de que a política deve seguir as leis da guerra e todos que os contestam devem ser liquidados politicamente ou fisicamente, como fizeram os Estados concentracionários do século 20 ao eliminar seus opositores quando ocuparam o poder na Rússia, na Alemanha, na Itália.

A Justiça organizada começou a ser estruturada na Antiguidade, continuou no século 13, época do Rei João Sem-Terra, até que muito depois, na Revolução Gloriosa, do fim do século 18, chegou-se à constatação de que a democracia não podia funcionar sem uma Justiça organizada. Deviam caminhar juntas.

Infelizmente a Justiça é constituída por homens e estes são vulneráveis às circunstâncias. Houve um processo no Brasil muito danoso, definido pelo Ministro Jobim como judicialização da política e politização da Justiça. Não é este o caso dos processos dos acusados de atentar contra a democracia, que correm dentro da estrita forma legal, garantindo o pleno direito de defesa.

É grave o ato do presidente dos Estados Unidos ao aplicar a nosso País sanções econômicas grandes, as maiores do mundo ocidental, e sobretudo ao tentar interferir na Justiça brasileira, sem olhar para a tradição de solidariedade que marcou nossas relações com seu país. Basta lembrar que nas duas guerras mundiais lutamos ao seu lado, deixando marca no sangue dos brasileiros que hoje repousam no Campo de Pistóia, na Itália.

O Brasil sempre resolveu seus conflitos pela diplomacia, nunca foi atacado desta maneira. Nosso País deve reagir com altivez e equilíbrio, necessários à defesa de nossa soberania e do nosso povo, o maior prejudicado numa guerra econômica, e do bem-estar da nossa Nação, evitando a crise e o prejuízo ao aprofundamento da democracia.

É urgente acabar com a mentalidade da confrontação. É preciso que toda a política, qualquer que seja a sua orientação, esquerda ou direita, seja feita dentro das regras democráticas, do diálogo, do parlamento. É preciso que o sentimento do Brasil, que nunca foi esse, volte a ser o do entendimento e da concórdia.

Quando aparecerem radicais doidos em nossa frente, vamos seguir o conselho do meu avô, que dizia: “Nunca corra atrás de um doido, porque você não sabe para onde ele vai.”

Invoquemos os princípios cristãos, aquilo que Cristo dizia no Pentecostes, quando se juntava aos apóstolos:

— A PAZ ESTEJA CONTIGO!

E eu acrescento: a Paz esteja com o Brasil.

Ilustração: crédito: Maurenilson Freire/ Correio Braziliense

 

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O homem é bom

 

Não é falta de assunto. O Brasil está vivendo uma tempestade de crises. E a humanidade está se agredindo com a demonstração de uma violência devastadora que nos fere a alma no testemunho do que acontece em Gaza, na Ucrânia, na Líbia e em outros conflitos menores, além do terrorismo desumano que espreita em qualquer lugar, fazendo vítimas no mundo inteiro.

Mas não é disso que vou tratar: é justamente do lado bom da humanidade, que está nos pequenos gestos, nos desinteressados afetos e carinhos puros dos namorados, dos casais e dos heróis que dão a vida pelos outros, nas missões de caridade espalhadas pelo mundo inteiro, salvando a vida de mães, pais, filhos e órfãos.

Escrevo com a alma cheia de reconhecimento da bondade humana, da pureza de alguns gestos que nos comovem e nos levam a meditar sobre o coração de homens e mulheres.

Sou testemunho de alguns desses gestos que marcaram a minha vida. Certa vez, perto do Natal, fui visitar os enfermos de UTI, levando uma palavra de conforto aos doentes. Sempre o fiz no anonimato. No Hospital Sarah de Brasília, parei ao lado do leito de uma menina que estava em seus últimos suspiros. Tinha me aproximado dela ao perceber seu estado. Tive um gesto de carinho com ela e perguntei-lhe o que desejava de presente de Natal. Ela me respondeu com dificuldade: “Meu pai tinha uma carroça em que trabalhava para dar de comer para minha mãe e meus irmãos. Caiu numa ribanceira, e o jumento morreu. Peço que dê um jumento para ele.”

Na época, publiquei na Folha de S.Paulo, na coluna que ali escrevia, uma crônica sobre este fato e até hoje o rememoro com a certeza de como o ser humano é bom: um jumento para o pai foi o pedido que ela fez à beira da morte!

Pois recebi agora um presente muito diferente, mas que também mostra a bondade mais pura: um amigo meu de Sucupira do Norte, a mais simples das pessoas, trouxe, em meio ao drama que está passando, com seu pai internado no Hospital Aldenora Bello, um presente para mim: uma galinha, um pouco de mel de tiúba e cascas de jatobá, me dizendo que este era um remédio para minha velhice ser prolongada. Que coisa admirável. Este talvez seja o presente melhor que recebi nos últimos anos. O mel é ouro, o frango é prata, o jatobá, diamante.

Cristo tem uma pregação sobre presentes quando conta da viúva pobre que depositou no cofre das esmolas duas moedas pequenas, de pouco valor. Os ricos depositavam grandes dádivas. Jesus diz a seus discípulos: “Esta viúva deu mais do que todos os outros.” E acrescentou: “Ela doou aquilo que tem para viver, na sua pobreza.”

Realmente nem todos os presentes suntuosos demonstram generosidade. O mais conhecido deles é aquele que os gregos relatam em sua mitologia, pelo que até hoje se diz quando um presente é ruim: “Isso foi um presente de grego.” O fato se refere ao cerco de Tróia, que durava 10 anos. Então os inimigos mandaram de presente um cavalo de madeira muito bonito e grande à cidade. À noite, depois que o cavalo passou pelo portão, de dentro saíram muitos soldados que abriram todas as portas da cidade e por elas entrou o Exército grego. Estes presentes são da maldade.

Mas há sim muitos presentes generosos que mostram que os homens são bons. A Princesa Isabel, aquela que libertou os nossos escravos e assinou a Lei Áurea, deu um grande presente, este de Rei, à Nossa Senhora Aparecida: uma coroa que está até hoje sobre Sua cabeça: uma bela coroa de ouro e brilhantes. Certamente esta prova de fé e reverência não era caridade, mas homenagem e devoção. Era aquilo de que Cristo falou, de excesso em sua fortuna.

Mas o presente de uma atitude, de uma vontade, e não algo material, recebi do meu bisneto Antônio, que mora em Fortaleza. Ele tinha cinco anos quando este fato aconteceu. Era seu aniversário, e sua mãe, minha adorável neta Ana Thereza, criatura bela de alma e também fisicamente bela, fez uma festinha para o filho e perguntou-lhe o que queria ganhar de presente naquele dia em que completaria seis anos, já sabendo ler e escrever. Antônio respondeu: “Mamãe, eu peço a Nossa Senhora para mandar baixar o preço das passagens aéreas para São Luís pra gente viajar pra lá e ver meu biso (bisavô).”

Fiquei derramado em felicidade quando minha neta logo telefonou contando seu pedido. É que ela, quando o filho pedia para ir a São Luís, onde hoje moramos, respondia sempre que o preço alto das passagens aéreas impedia muitas viagens para cá.

Eu, com esses gestos de bondade e pureza, não vou pedir para baixar o preço das passagens, mas vou tomar meu chá de jatobá e, na minha idade, não vou deixar de olhar para este mundo cão e dizer em alto berro: o homem e a mulher são boas e adoráveis criaturas!

Ilustração do texto: A Família, 1925, Tarsila do Amaral

 

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Um Mundo Novo

 

Estou mergulhado num terreno diferente e fascinante, a Internet. Realmente seu mundo para mim estava distante, mas era sempre objeto das minhas preocupações: a maior de todas, a luta entre o livro e a invasão digital.

Lembro-me de que a primeira vez que enfrentei o problema, objetivamente, foi quando, há mais de vinte anos, num almoço do Elio Gaspari, ele levantou o tema ao me dizer que, examinando e meditando sobre o domínio da internet, chegara à conclusão de que duas coisas não acabariam: o jornal e o livro. Com ele concordei imediatamente.

Passado o tempo, sempre preocupado com essa luta, participei de alguns debates sobre o assunto, o primeiro deles quando, convidado pela ONU, tive oportunidade de participar como debatedor da Conferência de Bibao, com o desafio de ter a companhia de grandes pensadores mundiais sobre o impacto da era digital nos direitos individuais, na privacidade e nos direitos humanos, quando verificamos que esses direitos estavam ameaçados e que não existia mais a proteção, com a garantia de que esses direitos seriam sempre sagrados. Eu, então, apresentei a minha constatação de que a verdade e a mentira também passavam pela mesma ameaça. Participou do meu painel o grande pensador mundial sobre os impactos da internet em nossa vida, Manuel Castells.

Afirmei ainda que, já naqueles anos, a quantidade de versões sobre determinado fato eram tantas que passara a ser difícil saber onde estava a verdade e a mentira. Quem escolheria a verdade verdadeira para nós passara a ser os aplicativos e seus algoritmos, que, não sendo exclusivos, teriam outros concorrentes que fariam outra escolha e, assim, tínhamos que escolher entre os que escolheram por nós.

Depois, há oito anos, fui convidado a proferir a Conferência inaugural da segunda maior feira mundial do livro, em Guadalajara. Na maior feira literária do mundo, a de Frankfurt, na Alemanha, foi lançada a tradução alemã do meu livro Saraminda. No México, naquele mundão de livros e autores, escolhi o tema de minha preferência O Livro e a Internet. Naquele ambiente desenvolvi a minha conclusão, com fidelidade ao mesmo conceito que Elio Gaspari desenvolvera havia vinte anos: o de que o livro não iria acabar, pois tem uma tecnologia que lhe assegura esse lugar: cai e não quebra; pode ser conduzido para qualquer lugar; aonde você for, pode levá-lo consigo; não precisa de energia para funcionar; tem todos os programas de computador, porque há livro para qualquer assunto; e muitas outras vantagens para competição. Recordo com saudades que lá estavam o Vargas Llosa e minha querida Nélida Piñon, que nos deixaram. Nélida, não só a sua saudade, como também a obra importante na literatura brasileira. E tivemos ainda a companhia de Paulo Coelho — que, da Europa, me avisou estar me seguindo no Instagram.

Esse mundo fascinante da Internet que agora o Instagram está me proporcionando é para mim um mundo novo, cheio de seduções e medo — por exemplo, quando vejo os milhares de seguidores e de visitantes interessados no meu corte de cabelo e nas bolas que acerto na minha fisioterapia. Mas a oportunidade maior de que estou desfrutando é poder falar dos livros de minha autoria e dos livros que marcaram minha vida e dizer que, nessa parte, embora seja o decano da Academia Brasileira de Letras, fui o mau pai da minha obra, pois a minha maior preocupação foi com a sua acolhida no exterior, e não aqui, onde as pessoas viam o político, e não o escritor. Já escrevi 123 títulos, em 168 edições, algumas em várias edições, como Saraminda e O Dono do Mar, agora em agosto reeditadas pela Ciranda Cultural, uma das maiores editoras do Brasil, com quem assinei contrato de direitos autorais por cinco anos, confiando na vontade do Criador de manter-me vivo até lá.

Mas a verdade é que devo também acrescentar que as nossas previsões, minha e do Elio Gaspari, não foram absolutamente vitoriosas. Os jornais estão sendo dizimados e obrigados a se mutilar, como aconteceu com muitos, transformando-se em tabloides. Perderam os anúncios para as redes sociais e as assinaturas para a Internet, migrando para o formato digital.

No caso dos livros, o ataque veio com as enciclopédias: todas foram assassinadas, e a Wikipedia as devorou completamente.

Agora estou me rendendo também aos novos tempos, sendo um velho de 95 anos, de calça jeans e cavanhaque, gritando que troquei os eleitores por leitores do meu Instagram!

 

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Um País confiável

 

Quando do término da elaboração da Constituição de 1988 tive a oportunidade de dizer que, embora não fosse perfeita, tínhamos de concluí-la para que a nossa Carta Maior coroasse a Transição Democrática e assegurasse que o País fizesse da melhor maneira a travessia de um regime autoritário para um regime de liberdade absoluta. Nesse sentido, era crucial promulgar a Constituição possível.

 

Assim ressaltei que a nossa Constituição era híbrida, parlamentarista e presidencialista, o que sem dúvida provocaria no tempo conflitos de competência entre um poder e outro. E agora estamos assistindo a essas disputas entre o Legislativo e o Executivo, além da recorrente acusação de ativismo judicial contra o Supremo Tribunal Federal, que estaria invadindo a competência do Congresso.

 

Nessas disputas a mais séria é o caso das medidas provisórias. Quando eu fui por oito anos presidente do Senado, tentamos várias vezes uma solução para que essa legislação não se tornasse rotina, aí sim, legislando com amparo na Constituição, mas invadindo costumeiramente o que seria atribuição de outro Poder.

 

A verdade é que no momento estamos vivendo um excesso de crises, como dizem os franceses nesses instantes. É crise nos preços, nos juros, no IOF (esta, um cabo de guerra), e para não ficar somente entre nós, vem Trump e impõe uma tarifa para o Brasil de 50% — um problemaço porque afeta todos os setores produtivos brasileiros complementares da economia americana. E ainda se enfrenta o grande embaraço de um presidente dos Estados Unidos que não tem a visão do que o seu país representa para o mundo e não respeita seus aliados e seus vizinhos. Como se não bastassem as nossas crises, temos que solucionar mais esta, certamente a maior, que tem conotações políticas e envolve empresas pessoais americanas, objeto de punição pela alta Corte da Justiça brasileira, uma vez que essas empresas são impedidas de veicular, no Brasil, materiais com propaganda de ódio e conteúdo antidemocrático, ambos proibidos pela legislação brasileira.

 

É triste sentir e constatar que os negociadores da crise do IOF não têm alcançado os resultados que eram de se esperar, pois eles têm autoridade e legitimidade para cuidar dos interesses nacionais, e não dos de grupos de pressão que atuam nessas ocasiões defendendo seus interesses — e não os do país.

 

Invoco mais uma vez meu testemunho sobre a origem desse inevitável imbróglio. A parte sobre o sistema tributário na Constituição de 1988 foi um dos textos que me levaram a dizer que o País se tornaria ingovernável e que a parte relativa ao consumo inovava perigosamente. A taxa do ICMS nas relações entre os Estados era feita pelo Senado Federal. Vem a Constituição e determina que seja da competência de cada Estado da Federação. O resultado é que temos hoje 27 taxas, cada uma refletindo os interesses de cada uma das unidades da Federação, que aumentaram significativamente à proporção que necessitavam de recursos. Isto aumentou muito a carga fiscal. Por outro lado, também o governo federal ao longo destes 40 anos tem aumentado seus impostos, enquanto a Câmara aumenta as despesas.

 

Por que então o País não ficou ingovernável? Porque aumentamos a carga tributária, o equilíbrio orçamentário desapareceu, e os impostos que recaem sobre o povo ficaram extorsivos. Se não encontrarmos uma solução para isso, dentro de três anos, aí sim, vamos enfrentar uma crise insolúvel. Nesses momentos as instituições têm de ser muito fortes para não serem atingidas. Lembremos Otávio Mangabeira quando dizia que “A Democracia é uma planta tenra que precisava ser cuidada constantemente.”

 

Não é possível que nossos líderes na Câmara e no Senado, com nosso competente, experiente e preparadíssimo Ministro Fernando Haddad não encontrem o caminho certo para o entendimento. Lembro-me do discurso inaugural de Tancredo Neves, que li perante o Ministério em 17 de março de 1988. Ele dizia: “É proibido gastar!” (A exclamação é minha.) E hoje podemos acrescentar: “E aumentar impostos!”

 

Assim, encerro esta exortação pedindo que abandonemos os discursos de ódio, passemos a considerar a opinião alheia, evitemos negociar pedindo ao outro lado o que jamais se pode aceitar e passemos a olhar mais para as responsabilidades que repousam nos ombros de quem exerce qualquer poder.

 

O Brasil precisa de Paz para continuar a ser o que sempre foi: um País confiável!​