José Sarney
A Pós-verdade
Estamos vivendo coisas com que nunca sonhamos. Uma delas, a pós-verdade, que colocou a mentira no lugar da verdade, que deixou de ser o que é para tornar-se o que as emoções da rede social definiram como verdade. O fato foi substituído pela narrativa.
As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres. Podemos, numa tela vazia em nossa frente, por artes de Deus ou do diabo, ver o que se passa em todos os lugares do mundo no instante mesmo em que estão acontecendo. Com uma pequena caixinha que cabe na palma de minha mão, posso localizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e falar com ela, através dela me comunicar, saber e transmitir notícias, prever o tempo, fazer cálculos matemáticos e recuperar mensagens que me mandaram de outra máquina fabulosa — sua excelência, o computador —, que com um teclado que também me conecta com todo o mundo no mesmo instante que me fornece todas as informações que desejo, milhões e milhões de dados sobre tudo, a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, que vão se multiplicando quando alguém mais se junta a esse processo, que não tem limites e atinge o infinito, que é o conceito de rede.
O que acontece com nossa cabeça que foi da cultura oral, fez uma pausa no livro e de repente caiu na era da cultura visual? Que mudanças aconteceram em nossa maneira de pensar, nos costumes e nos sentimentos que durante milênios criaram a criatura humana que a História formou até agora? Nós nos acostumamos a conviver com a alegria, com a tristeza, com o amor em todos os seus níveis, com a noção de trabalho, com os valores da família, os sentimentos de ódio, da cólera, da violência, tudo isso de maneira artesanal, criando outro mundo, outra sociedade para a qual não estávamos preparados, diferente, com coisas que não podemos dominar, outro mundo a que buscamos nos adaptar, e não ele a nós.
Tudo mudou. Vivemos nossas circunstâncias, em que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade. Nossos sentimentos e nossas reações estão sendo reciclados e já não são o que nos faziam acreditar. “O que em mim sente está pensando”, dizia o verso de Fernando Pessoa. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades do ser individual e sim do ser coletivo que somos.
O amor deixou de ser o amor como o concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte deste contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas para a sublimação dos prazeres. A droga da modernidade, com a parafernália de comunicação, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade de ingeri-la, porém, a obrigação de consumi-la.
O culto da velocidade. Não temos mais a liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fez dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Já não tem sentido escrever cartas. A civilização é oral, é o telefone. Escrever passou a ser algo atrasado. Escreve-se para confirmar o que se falou. Fala-se por telefone, por fax, pelo computador, pelo cinema, pela televisão, pelas redes sociais na internet.
Vemos perplexos que somos um grande laboratório e que estamos nos transformando com todas as mudanças que acontecem no mundo. É como se estivéssemos chegando ao desaparecimento da espécie de homem que foi o homem e que fez a História que chegou aos nossos dias.
Estamos em meio a estas perplexidades que são mais de segurança que de dúvidas. Nossas reações são condicionadas pelas inseguranças que nos rodeiam. Já não sabemos o que é bom e o que é mau. Nossos códigos de ética e comportamento individual, aquelas leis que cada um de nós processa dentro de si ao longo da vida, de um momento para outro estão questionadas pela realidade virtual. São os meios de comunicação que nos condicionam, e de tantas informações que nos chegam já não podemos distinguir o que é verdade e o que é mentira… As verdades são tantas que é impossível saber qual delas realmente é a verdade. Abrimos os jornais, vemos televisão, navegamos na internet, e a soma de informações que nos chegam são tão grandes que não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las.
Estamos dentro da bolha da rede social na internet, da qual é impossível fugir. A tarefa de sair tornou-se inexpugnável.
São tantas as versões que existem sobre uma verdade que é difícil descobrir onde está escondida a verdadeira mentira.
Ilustração: “Squelette arretant masques” (1891): a obra de James Ensor é famosa pelos seus desenhos e pinturas de máscaras e multidões que utilizou como crítica social da hipocrisia e da mentira
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Quanto vale um Deputado?
Como reagir ao saber da notícia de que, em Mato Grosso, a Polícia Federal chegou ao fim de uma investigação para saber quem tinha assassinado o advogado Roberto Zampieri, que estava permanentemente lutando contra a corrupção na Justiça naquele Estado, e, quando concluiu o trabalho, o que a Polícia encontrou, para o estarrecimento de todos e vergonha para o País? Uma empresa estruturada com uma tabela de preços para a prática de crimes hediondos, chegando ao maior deles: o homicídio.
Na tabela, os criminosos precificaram um deputado: vale cem mil reais. A revelação desses fatos nos levou à indignação, sentimento que chegou também a toda a sociedade. É, sem dúvida nenhuma, a perspectiva ou certeza de impunidade. Só esta hipótese pode explicar tanta ousadia. Não uso “coragem” porque esta é uma palavra que não pode ser aplicada para bandidos, para o mundo do crime.
Como os tempos mudaram! Nessa linha penso no Maranhão do século 19, quando o A Pacotilha, combativo jornal de S. Luís, publicava anúncios de um poeta oferecendo-se para fazer versos a preços módicos, colocando uma tabela de preços que eram proporcionais ao sentimento que o freguês tinha: versos de amor: 50 réis. Se fosse soneto, dobrava o preço para 100 réis. Quando o pedido era do marido enganado, que estava doente pelo amor perdido e desejava matar de inveja seu concorrente sedutor, o preço era maior que todos os outros, 200 réis. O poeta dizia que o aumento do preço era pela dificuldade que tinha de sentir essa desgraça. Naquele tempo dos réis, o dinheiro tinha um valor que não se pode comparar com o de hoje em dia.
Agora a política no Brasil está sendo levada pelo ódio e pelo ressentimento. Não acho que seja por programas de direita ou de esquerda. É mais um sentimento partidário e coletivo de dirigentes em busca de poder. E para isso o gosto de ganhar leva os ânimos a ficarem fora de controle.
Quando a política era colocada em torno de questões ideológicas, como no final do século 19, a discussão entre Rosa Luxemburgo, apelidada de “Rosa la Roja”, e Eduard Bernstein, sobre Reforma e Revolução, foi central para o movimento socialista. Muito depois Lenin impôs sua concepção leninista, invocando Clausewitz, o autor do livro Da Guerra (Vom Kriege), um clássico até hoje dissecado por estudiosos, afirmando que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Lênin estendeu essa ideia de Clausewitz, dizendo que se deveria aplicar à política as “leis da guerra”.
Assim na política não se teria adversários, mas inimigos, pois ela seria uma luta de classes que se estabelecia nos partidos burgueses, formados de inimigos do povo, e assim adversários eram inimigos que deviam ser eliminados. Paradoxalmente, hoje Benjamin Netanyahu, alegando motivos religiosos, pratica o extermínio dos palestinos, o que provoca a revolta mundial porque não se entende como se pode fazer da fome arma de guerra, como ocorre em Gaza.
Lembro do nosso poeta Bandeira Tribuzzi: “Que tempos de viver-se! Quando a fome / é crime, crime o canto e a liberdade / falso lema de gritos e histerismos, / vai perdendo a beleza que criara / entre as patas e o cântico das balas / assassinas de peitos sem defesa / como lírios entregues ao delírio / das razões em razões da força estúpida.”
Mas no Brasil não existe nenhuma dessas hipóteses de guerra: há um anarcopopulismo que torna a atividade política uma bagunça, sem partidos e sem ideologias, o que faz com que os programas e as doutrinas desapareçam e haja somente os dirigentes voltados a pensar na vitória — e para ela vale-tudo.
Mas tudo isso não é causa: é efeito de uma estrutura de sistema eleitoral impossível de continuar, baseado nas pessoas e com sistema de votação arcaico, que não existe em lugar nenhum do mundo, servido por um presidencialismo de composição.
O sindicato do crime assim é uma manifestação de violência que não pode ser aceita. Esses matadores de agora não devem ser considerados senão como criminosos que são, e seus crimes devem ser investigados até o fim e punidos com rigor.
Vai-se o tempo, e a minha terra com seu mercado de poesia cobrando preços irrisórios, com o poeta com sua empresa limitada e individual e seus sonetos de amor. Ao contrário dessa firma ignominiosa de Mato Grosso, que é uma sociedade anônima com muitos sócios.
Quero lembrar novamente versos do grande poeta maranhense Bandeira Tribuzzi, que diziam: “Que sonho raro / será mais puro e belo e mais profundo /do que esta viva máquina do mundo?”
É hora de acabarmos com o ódio e marchamos para uma convivência civilizada em que os nossos juízes, deputados e senadores, tão atacados, se entendam nas divergências e se unam no interesse público e melhorem o apoio do povo a seu trabalho.
Cadeia para os bandidos e, aí sim, maldição a esses que mancham o Brasil.
Crédito da imagem: Maurenlson Freire/Correio Braziliense
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O mau político
Eu fui a São Paulo receber uma homenagem da USP – Universidade de São Paulo, na sua tradicional e famosa Faculdade de Direito, conhecida como Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde, numa solenidade especial, comemoramos os 40 Anos de Democracia no Brasil. Ressaltei o significado desse encontro com uma grande e qualificada audiência, formada de professores, formandos de diversos cursos e convidados políticos, que, em grande número, prestigiavam aquele evento. Procurei louvar a nossa Transição Democrática, o que representa para nós essa consciência de que a Democracia nos deu a Liberdade e, por meio dela, o direito à cidadania plena.
A Liberdade tem um poder criativo extraordinário. Cheguei a afirmar, nas Nações Unidas, num discurso que fiz quando assumi a Presidência da República, que a Democracia era o caminho do desenvolvimento e, depois, pensei bem e lembrei-me da China, que nos contraria esse nosso entendimento, e de que Thomas Jefferson foi quem definiu a Democracia como a conquista da Liberdade, e pudemos acrescentar, naquela oportunidade, que ela não foi feita para resolver problemas econômicos, cujo alcance depende de pessoas e circunstâncias. Ele também acrescentou a esse conceito a “busca da felicidade” entre os direitos do homem.
Jefferson era um homem do saber. Falava oito línguas, a começar com falar latim, grego e hebraico, além de possuir uma vasta cultura que incluía grande conhecimento de arqueologia e antropologia, o que inspirou John Kennedy a dizer a frase tão repetida nos Estados Unidos: “…a não ser quando Thomas Jefferson jantava sozinho nesta sala da hoje Casa Branca.” Kennedy afirmava, então, que Jefferson tinha mais cultura e inteligência que aqueles seus convidados — sessenta ganhadores do Prêmio Nobel, que jantavam naquela noite com ele, Kennedy, Presidente dos EUA!
Entrei numa estrada lateral. Mas prossigo na homenagem da Faculdade do Largo de São Francisco. A minha palestra foi sucedida por respostas a algumas perguntas. Uma delas era que conselhos daria aos jovens que queriam entrar na política.
Minha primeira observação foi a de que há políticos e Políticos, com P maiúsculo, como dizia Joaquim Nabuco a respeito do seu pai, o Senador José Tomás Nabuco de Araujo. Aos primeiros, atribuo o fato de considerarem a política como profissão ou emprego, e assim estão voltados para interesses que não os da atividade política. E assim pensam em si mesmos, nos seus interesses pessoais, em sua remuneração e, não raro, quase permanentemente, estão visando vantagens e ganhos de dinheiro associados a prestígio, uso de jabutis nas emendas da legislação e outras atividades indevidas. Estes são os maus políticos, que desmoralizam a política e mancham a imagem dos verdadeiros Políticos. Devem ser objeto de identificação e repelidos pelos eleitores e por toda a sociedade.
Os com P maiúsculo são aqueles que pensam nos outros, na sociedade, no seu próximo, no seu Município, no seu Estado, no seu País, na Humanidade. Têm ideologia, programa de ação e conduta moral e política ilibadas. Zelam pela política, protegem a administração pública, têm espírito público moral.
Aos jovens que desejam entrar na política, eles primeiro têm que escolher qual das duas espécies de políticos desejam ser.
Se forem os da primeira, digo para jamais entrarem ou pensarem em entrar na política. Serão infelizes e provocarão a infelicidade dos outros, da sociedade, além de manchar o nome de sua família. Procurem emprego e cumpram seu destino individualista.
O outro caminho é o de Políticos de que precisamos, dos que dedicam sua vida aos outros, que pensam nos seus semelhantes, que desejam melhorar a sorte do seu torrão natal, do seu Município, do seu Estado, do seu País, da sua sociedade, da Humanidade.
Para esses, devo dizer que o primeiro passo é o de saber se têm vocação de liderança. Se desejam mudar o mundo. Se têm utopias, se têm fé. Se acreditam na esperança e caridade. Devem estudar, ter uma base de cultura humanitária e saber trabalhar em equipe.
Venham se juntar aos jovens políticos, busquem o exemplo dos velhos bons políticos. Abominem a corrupção. Tenham um ideal.
E, para mim, homem de fé, devem acreditar em Deus. Sejam cristãos.
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O novo Papa – Leão XIV
Está muito cedo para saber-se o que aconteceu nas quatro sessões que levaram os cardeais a escolher o Cardeal Robert Prevost, americano e peruano, para tornar-se o Papa Leão XIV. Ele adquiriu a nacionalidade peruana, uma vez que a legislação daquele país exige que todo cidadão que esteja há mais de dez anos ali se naturalize peruano. Só ele pode dizer se foi uma vontade pessoal e um amor que cresceu ou se apenas cumpriu uma exigência legal. O certo é que, de uma forma ou de outra, a legislação pode ter influenciado na sua escolha.
É outro Papa da América Latina, o que assegura uma continuidade do Papa Francisco e, ao mesmo tempo, revela que sua escolha tem o DNA do seu antecessor — a rapidez da escolha também revela isso. Francisco tinha uma marca de vivência peronista e, por esta marca, distanciou-se de Milei: durante seu papado, não visitou a Argentina. As ideias do atual mandatário, de estado mínimo, estão muito distantes das do Papa Francisco. A verdade é que ele foi criado e vivia na Argentina durante quase todo o período em que Perón governou o país. Contudo, não foi esta a marca do seu funeral: ele distanciou-se destas ideias raiz e terminou glorificado com a presença dos presidentes e dignatários dos maiores países do mundo. Não se pode deixar de analisar a presença de Trump e a necessidade de confrontá-lo com a liderança católica, moral e política do Papa. O mesmo que ocorreu com João Paulo II em relação ao mundo comunista e a Cuba.
Vou me aventurar a entrar na Capela Sistina e testemunhar como ocorreu a escolha do Novo Papa.
A primeira votação é a rodada das homenagens, cada um votando no cardeal amigo ou preferido. Na segunda, é a hora dos privilegiados, aqueles que entrarão papáveis e sairão cardeais, entre eles os burocratas da Cúria — e aí perderam os italianos. Naturalmente foi uma discussão acirrada, o que obrigou, após a terceira rodada, os seguidores de Francisco e por ele nomeados cardeais (dois terços) a abrirem o jogo e lembrarem o voto de gratidão, pois Francisco já tinha preparado a indicação do Cardeal Prevost, latino-americano e americano. Bastou essa explicitação para que, na quarta votação, se chegasse à escolha do novo Papa: continuidade de Francisco, conduta marcada pelo estilo latino-americano de Igreja dos pobres, despojada, mas canônica, sem esquecer sua liturgia e pompa.
Mas o Papa Leão XIV nasceu e cresceu nos Estados Unidos, sendo cidadão americano; portanto, sem raiz na pregação da miséria e da fome. Seus temas são raciais e políticos, sua relação com o mundo é a de levar a mensagem da democracia, na formulação de Jefferson, de que todos nascemos iguais e temos o direito da busca da felicidade.
A formação de Leão XIV já diz do seu equilíbrio. Primeiro estudou e formou-se em matemática, ciências exatas e, segundo, em Filosofia, abstração. São duas matérias que levam a uma confluência: a aridez da matemática e a caridade nos direitos humanos. Assim, a personalidade deste Papa é sedutora. Sai da amplitude de sua formação para os compromissos de sua eleição ao escolher o nome de Leão, tendo como antecessor o mais notável da doutrinação da Igreja, Leão XIII, que, em meio às perplexidades e injustiças trazidas pela Revolução Industrial — contrapondo ao Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels, e ao capitalismo de Adam Smith —, aponta o caminho da Igreja: a Rerum Novarum, como seu braço temporal.
Leão XIV escolheu um grande desafio com um grande peso. Será que ele vai adiante? É difícil, mas não impossível. Ele está ao lado de Santo Agostinho, já que é o primeiro papa da Ordem de Santo Agostinho, e o segundo dos mais notáveis — como Leão XIII, que deu à Igreja a sua doutrina social, a Rerum Novarum.
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O que é CPLP?
Eu era Presidente da República, e Mário Soares, Presidente de Portugal. O meu telefone toca, era o meu amigo Mário Soares, de Lisboa. Como é o costume português, o interlocutor perguntou: “Está lá?” Respondi, também no mesmo costume português: “Estou, estou!” Nada de “Alô, alô”, como respondemos no Brasil. Ele diz: “Senhor Presidente, sei que estão realizando uma nova Constituição e venho pedir-lhe que nela conste que a língua oficial do Brasil é a Língua Portuguesa”. Respondi-lhe: “Mas, caro amigo, esta é mesmo a nossa língua e já falei ao Ulysses Guimarães que assim o faça.” E dessa forma ficou registrado em nossa Constituição. Disse ainda ao Presidente Mário Soares que desejava mesmo fazer uma reunião no Brasil para fundarmos uma comunidade de países que falam a língua portuguesa. Portugal estava de acordo, disse-me ele.
Encarreguei o Itamaraty de mobilizar nosso serviço diplomático na África para convidar, pessoalmente, todos os Presidentes dos países lusófonos para um encontro em São Luís, no Maranhão, onde faríamos uma primeira reunião.
Para minha surpresa, os africanos reagiram, recusando-se a participar de uma reunião com Portugal para criação de uma comunidade, alegando estarem num momento de proximidade da descolonização e serem muito recentes as cicatrizes deixadas pelos colonizadores, tudo ainda à flor da pele. Diante desse impasse, sugeri que fizéssemos a reunião não para criar uma comunidade, mas para criar uma instituição, o IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), com foco na defesa da língua portuguesa e de caráter eminentemente cultural. Assim todos concordaram — com exceção do José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola, que não veio, mas enviou representante, justificando sua ausência pela indisposição de se reunir com Mário Soares.
Dessa forma, a língua mostrava o seu efeito unificador e sua neutralidade, constituindo-se patrimônio de todos nós. Anos depois, com a concordância geral, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa tornou-se CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), um grande e prestigiado organismo internacional, com sede na África, em Cabo Verde, presidido, em rodízio, por todos os presidentes dos países onde se fala português.
No dia 5 maio, nesta semana, celebramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Essa data foi estabelecida pela CPLP — que se tornou uma organização parceira oficial da UNESCO em 2000 —, que nasceu em São Luís do Maranhão.
A Academia Brasileira de Letras foi fundada há mais de 100 anos e, na sua instalação, dois grandes escritores, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, estabeleceram as diretrizes, sintetizadas em duas condutas: defender a língua e a tradição.
Eu, por artes do destino, sou hoje o decano da ABL e assim tenho a obrigação, como político e intelectual, de defender — como o fiz na criação da CPLP — essa nossa extraordinária língua de cultura, hoje falada por quase 300 milhões de pessoas.
Nestes últimos quinhentos anos, o português transformou-se de um idioma oceânico em um idioma continental.
Ao iniciar, no século XV, sua expansão para fora da faixa mais ocidental da Península Ibérica ganhou primeiro o Atlântico e depois o Índico, fixando-se nas ilhas e nos pequenos e numerosos portos ao longo das praias que bordejam o que os gregos chamavam de Rio Oceano. Língua de marinheiros, tornou-se o idioma de ligação dentro dos breves espaços das feitorias e o falar do comércio com os povos que lhes eram vizinhos. Impôs-se como língua de beira-mar e de viagem, insulana, quer a cercasse o mar ou a isolassem a estranheza e a hostilidade das terras que a envolviam. Isso não impediu que se tornasse a língua franca do mercadejo nos litorais da África e do sul da Ásia, que se fizesse a língua de corte, a exemplo do que sucedera com o francês na Europa do século XVII, em reinos africanos como os do Benim, do Congo e do Warri, que entregasse palavras e modos de dizer a numerosas línguas, do iorubano ao japonês, que marcasse profundamente não só o vocabulário, mas também a sintaxe de idiomas como o papiamento e o urrobo, que criasse novas línguas, como os crioulos de Cabo Verde, de Casamansa, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom, e os papiás de Málaca, do Ceilão, de Macau, do Timor e da índia.
O açúcar, o ouro e o gado fizeram-na, com relativa rapidez, ganhar o interior do continente sul-americano. E, se mais lento foi o avançar pelos planaltos africanos, subiu o Zambeze e se instalou nos “prazos” de Moçambique e percorreu, em Angola, o Cuanza, o Loja, o Dande, o Cuvo, fixando-se, ali e acolá, em entrepostos, vilarejos e acampamentos de pombeiros. Abandonou, pouco a pouco, sua insularidade. Saiu dos navios e das praias, para expandir-se terra firme adentro, acabando por consolidar-se num imenso espaço territorial, terra que se tornou a América Portuguesa, um dos mais amplos espaços do mundo em que se fala o mesmo idioma. E fala-se o mesmo idioma com invulgar unidade, uma unidade que se superpõe aos regionalismos que o enriquecem e que o tornam, sem qualquer esforço, naturalmente compreendido por todos os que o falam ao longo do grande arco que corre da Europa até Timor-Leste.
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O livro não morrerá
Na semana passada comemoramos o Dia Mundial do Livro (23 de abril), com letra maiúscula, pois o Livro é o meu maior amigo, que Deus me deu no meu nascimento e me acompanhará até o fim. Acredito que vinte por cento da minha vida tenho passado o tempo em sua companhia.
Um dia, em São Paulo, ao almoçar com Elio Gaspari, ele me tranquilizou dizendo que duas coisas não iam acabar com a ameaça dos avanços da internet e do livro digital e concluiu: o jornal e o livro não acabarão nunca. Concordei e fui sedimentando essa convicção.
Hoje sei que alguns segmentos do livro foram atingidos: as enciclopédias e os dicionários já morreram. As minhas enciclopédias Larousse e Britânica já estão com doença terminal autoimune: olham-me com os olhos de amargura, pois há muito tempo não as procuro. Estou de amores novos com a Wikipédia.
Há sete anos participei da Feira do Livro de Guadalajara, convidado por seu presidente, Raúl Padilla López, a maior feira do livro em espanhol do mundo — um extraordinário conjunto com imensos espaços, onde se realizam palestras, seminários, com autógrafos de grandes autores. Ali encontrei García Márquez, Vargas Llosa, Miguel de la Madrid, Nélida Piñón, Marisol Schulz e muitos outros.
Pronunciei a conferência inaugural. O tema era “O livro e a internet”. Defendi que o livro jamais acabaria e procurei percorrer o longo e grande caminho da escrita, como consequência da linguagem.
Minha geração viveu entre a magia e a realidade. Aconteceram fatos e criaram-se coisas que nunca sonhamos pudessem existir. As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres inimagináveis. De repente, podemos, com um monitor à nossa frente, a TV, assistir ao que acontece em todos os lugares e no mesmo instante em que estão acontecendo. Com um pequeno paralelogramo, uma caixinha que cabe na palma da mão, o celular, podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e com ela falar, comunicar, transmitir notícias, saber do tempo, fazer cálculos e recuperar os recados mandados de outra máquina — o computador —, numa conexão universal onde passam quase instantaneamente todas as informações que eu desejar, milhões e zilhões de dados sobre tudo, que muda a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, e vai crescendo à proporção que alguém a ele se agrega, nessa teia que não tem limites, ganha o infinito e se chama rede.
A História é marcada por mudanças mais ou menos bruscas que alteram seu curso. Revoluções, dizemos. A do Fogo, a da Roda, a da Navegação. Com mais razão, a da Agricultura, da Terra Semeada, a do Pastoreio. Também dizemos idades: da Pedra, do Bronze, do Ferro. Mas o que define realmente o homem é sua capacidade de se comunicar. Só com o Homo habilis, há dois e meio milhões de anos, surge a capacidade fisiológica da linguagem, talvez com a comunicação simbólica, e apenas com o Homo sapiens sapiens, há meros duzentos mil anos, surge a linguagem propriamente dita. Não sabemos como surgiu, mas sabemos que ela transformou profundamente a sociedade humana.
Há cem mil anos a linguagem falada começa a se diversificar. Ela é o instrumento — instrumento tecnológico — que permite a troca, que permite o intercâmbio de cultura, que permite a formalização de estruturas sociais, e é portadora de sua própria transformação.
A tecnologia da escrita foi usada, desde o começo, como instrumento de poder. Claude Lévi-Strauss — que foi meu amigo e com quem mantive razoável correspondência — tem uma frase muito forte: a escrita “era usada para facilitar a escravidão de outros seres humanos”. A escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a formação de hierarquias internas e de supremacia externa.
A capacidade de aprender sem mestre foi uma das grandes façanhas da escrita. Mas o verdadeiro feito foi acelerar a velocidade em que o conhecimento — informação e também sabedoria —, era transmitido. Os intervalos da natureza estão sempre em aceleração, e este impulso foi maior: a vida tem 4,3 bilhões de anos; primatas, 10 milhões; Homo, 2,5 milhões; Homo sapiens e linguagem falada, 200 mil; escrita, 5 mil e trezentos anos. O brusco passo da difusão da cultura oral para a cultura escrita levou 25, 30 séculos. Uma eternidade, mas um instante. Da escrita para cá corre a História.
Em Roma, os grandes homens deviam ser também escritores. Era parte essencial de sua reputação a qualidade do que escreviam. Assim a memória de Cícero e César encontra a de Virgílio e Plutarco.
A leitura e o livro caminharam. Na Idade Média a cópia era uma arte, os livros e as bibliotecas, preciosidades. As bibliotecas das primeiras universidades, como a Sorbonne, tinham umas poucas centenas de exemplares. Foi quando chegou a revolução de Gutenberg. Com a imprensa, a difusão do conhecimento daria um salto.
Assim chegamos à era atual em que a internet ameaça o livro em papel.
Nessa era o livro vencerá. É a mais nova tecnologia. Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa de energia. Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar: no ônibus, no automóvel, no avião e no banheiro.
Como é gostoso seu cheiro e poder voltar a página para verificar o que foi lido!
Não há melhor presente do que um livro.
Quando visitei os Estados Unidos como chefe de Estado, a Srª Selwa Roosevelt, então chefe do cerimonial da Casa Branca, que escreveu suas memórias, disse que a mais fácil escolha de presente que teve para o Presidente que visitava os Estados Unidos foi o meu, porque soube que eu gostava de livro e que ela tinha predileção por Walt Whitman, poeta americano. E dos grandes. Ela comprou a coleção de suas obras completas e ofertou-me.
O Presidente Reagan as autografou: “Melhor homenagem eu não poderia fazer ao meu amigo, o Livro, senão estas palavras, desejando que ele faça parte da vida de todos os brasileiros e brasileiras.”
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José Sarney, 95 anos: uma celebração à vida e à história
Nesta quinta-feira (24), José Sarney, ex-presidente da República (1985–1990), completou 95 anos de vida. A data, além de marcar o aniversário de um dos nomes mais influentes da política brasileira, tornou-se um momento de reconhecimento e memória pela sua contribuição histórica à democracia do país.
A celebração aconteceu na Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), em São Luís, em uma cerimônia que reuniu autoridades, amigos e familiares para homenagear a trajetória de Sarney. Um dos pontos altos do evento foi o lançamento do selo e do carimbo comemorativos pelos 40 anos da redemocratização. A imagem escolhida para o selo traz Sarney ao lado de Tancredo Neves, símbolo de um Brasil que, após anos de repressão, voltava a respirar liberdade e esperança.
A solenidade também marcou a abertura da exposição “Ecos da Democracia: fios de memória e resistência”, que resgata, por meio de documentos e imagens, o caminho da reconstrução democrática e os desafios vividos por quem lutou por um país mais justo.
O evento contou com a presença de diversas lideranças políticas e representantes institucionais, entre eles o governador do Maranhão, Carlos Brandão; os deputados federais Juscelino Filho e Roseana Sarney, filha do presidente José Sarney; o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas; o governador do Pará, Helder Barbalho; a presidente da Assembleia Legislativa do Maranhão, Iracema Vale; além de representantes dos Correios, do Ministério das Comunicações, do Tribunal de Justiça do Estado e da própria Fundação.
Memórias
Logo no início da cerimônia, um vídeo emocionou os presentes ao relembrar os tempos difíceis da Ditadura Militar, os ecos da censura e a importância do papel de Sarney na condução pacífica e democrática da transição. Juscelino Filho, que abriu os discursos, ressaltou a responsabilidade de cada brasileiro em defender os direitos fundamentais e destacou a atuação de Sarney na promoção do diálogo, da cultura e dos direitos humanos.
O governador Carlos Brandão classificou a noite como histórica. “Hoje celebramos não apenas os 95 anos de vida de José Sarney, mas os 40 anos de um marco essencial da nossa história: a redemocratização do Brasil. Falar de Sarney é falar de uma presença constante nas grandes decisões do país nas últimas seis décadas”, afirmou.
Visivelmente emocionado, José Sarney agradeceu as homenagens com a voz carregada de gratidão. Relembrou a amizade e a importância de Tancredo Neves naquele momento decisivo para o país, e saudou os presentes com seu tradicional “Brasileiros e brasileiras” — uma marca de sua passagem pela Presidência da República. “Falo com o coração cheio de emoção e gratidão, porque a gratidão é a memória do coração. Essa homenagem tem um valor especial porque vem da minha terra, do meu povo, do meu chão”, declarou.
Sarney também destacou o papel da Fundação da Memória Republicana como um espaço essencial para a preservação da história e para o acesso de pesquisadores a documentos e registros do período em que esteve à frente do governo.
Mais do que uma celebração de aniversário, a data foi um tributo à memória viva de um homem que ajudou a escrever capítulos importantes da história brasileira — e que, aos 95 anos, segue sendo lembrado com respeito, carinho e reverência.
Morte e Vida de Deus
“Nosso tempo só pode ser interpretado à luz da Sexta-Feira Santa. Estamos mergulhados num imenso vazio, entre a morte de Deus e a esperança de Sua ressurreição”. Estas são palavras do poeta Pierre Emmanuel, da Academia Francesa.
- Paulo já doutrinava que, sem a ressurreição, não existe cristianismo, e João Paulo II (S. João Paulo II) repetiu muitas vezes, inclusive no Brasil, na imagem de que muitos queriam Cristo sem a cruz e outros, a cruz sem Cristo, na análise das cobranças entre o espiritual e o temporal na missão da Igreja.
A grande revelação do cristianismo está contida na ressurreição. O homem vendo finalmente a face de Deus e, na vida, liberto da angústia, da lei do “olho por olho e dente por dente”, vivendo a bondade, perdoando a todos e a tudo, sem ódio e sem medo, o homem bom, cristão, encontraria a essência da vida: a paz interior.
Dois mil anos depois, o cristianismo não alcançou transformar o homem, ainda prisioneiro da violência, do pecado, como síntese de toda a escravidão, do corpo e da alma.
O autor mais lido da Humanidade é o Cristo. Um homem que não escreveu nada, ao que se sabe, apenas algumas palavras na areia. Contudo, a força de sua doutrina desencadeou uma revolução na História do mundo pela palavra. Ele revelou, num tempo de escravos e senhores, de uma sociedade perdida pela divisão de castas, condições e submissões, uma verdade simples: a de que todos somos irmãos, todos iguais, todos filhos de Deus e todos destinados à salvação. Ele nos ensinou a buscar a Paz interior. Não a ausência da guerra, mas a presença da Paz dentro de nós mesmos, sem nada a cobrar, sem ressentimentos, sem a desgraça que não passa, corroendo o corpo e a alma pela escravidão da maldade.
Cristo nos ensinou a perdoar e nos assegurou o caminho da salvação: encontrar a felicidade na certeza de que o homem tem um destino transcendental. “O fim sem fim do começo de tudo”, como afirmava o padre Vieira.
A Igreja tem buscado, ao longo dos séculos, acrescentar caminhos, descobrir outras mensagens na Mensagem primeira do cristianismo. Tudo é necessário, mas a força maior que chegou até nós, e se prolongará até o século dos séculos, é aquela que nasceu na Igreja das catacumbas: a revelação do próprio Cristo.
A missão social da Igreja passou a preocupar a própria Igreja a partir da Revolução Francesa, quando surgiu a expressão democracia cristã. A identidade católica devia ser a base de uma sociedade democrática.
As pressões amadureceram e tomaram corpo na doutrina, com o correr dos tempos, na Rerum Novarum. A Graves Communi limitava a visão social, terreno da caridade (1901). Muitas outras encíclicas vieram. Mater et Magister (1961), Pacem in Terris (1963), os documentos do Concílio Vaticano 2º (1965), a Populorum Progressio (1967), Evangelii Nuntiandi (1975) de Paulo 6º, passando pela Laborem Exercens até a carta de João Paulo II à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a excelente Laudato Si’, de Francisco, sobre meio ambiente, hoje no seu aniversário de dez anos. A CNBB deflagrou a Campanha da Fraternidade neste ano optando pelo tema “Fraternidade e Ecologia Integral”, invocando o Livro dos Gênesis para lembrar que, quando fez a Terra, “Deus viu que tudo era muito bom”.
Hoje se discute a relação entre Igreja e partidos políticos. Seria a doutrina social cristã a terceira linha entre socialismo e capitalismo? E, com o desmoronamento do socialismo de Estado, há uma convergência entre democracia cristã e social-democracia. Como a Igreja deve se comportar neste instante em que as estatísticas apontam o crescimento do ateísmo, a invasão das seitas e a onda do materialismo científico, que volta ao tema da morte de Deus?
Hegel falou, em 1802, numa “Sexta-feira Santa especulativa”, anunciando a descoberta da morte de Deus. Nietszche assumiu a autoria desse assassinato: “Deus morreu. Nós o matamos.” Assim também pensaram Marx e Freud. Mas nunca esteve tão vivo e nós precisando tanto Dele.
Está vivo! A Sexta-Feira Santa é não o dia da Sua morte, porque Deus não morre: é o Dia da Ressurreição.
Esta Sexta Santa de hoje nos convida a meditar e ouvir os exemplos da Paixão. É Cristo amando os homens até o fim, como afirma S. João e, neste Amor Maior, a Eternidade que se começa a ver pelos olhos daquelas Marias — Maria Madalena, Maria Salomé e Maria de Cléofas —, que de madrugada olhavam o Santo Sepulcro: estava vazio.
O Anjo lhes disse: Non est hic. Ibi est. (Não está aqui. Está LÁ = no Céu)
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O carvalho e a couve
Nós, brasileiros, temos o hábito de cultivar o pessimismo em relação ao nosso País. O nosso olhar é um pouco o de ver a árvore, e não a floresta, como no apólogo que Rui Barbosa invocou quando discutia uma lei de anistia: ele citou a diferença entre plantar couve e plantar carvalhos e concluiu: nós gostamos sempre de olhar a couve sem ver os carvalhos.
Quero fazer uma reflexão sobre a satisfação e a alegria de ser brasileiro, alegria de termos construído uma sociedade de convivência sem problemas de fronteira, que o Barão do Rio Branco resolveu no princípio do século; de religião, pois temos no Brasil liberdade de consciência e, sobretudo, convivência entre crenças e convicções; de raça, pois aprendemos a não ter preconceitos raciais e a conviver com alegria. De tal sorte que dizia Gilberto Amado ser a expressão carinhosa que usamos em relação a uma mulher de qualquer cor “ó, minha neguinha” uma referência a uma mulher linda e inteligente, por quem temos admiração, afeto, carinho e amor.
Agora quando estamos comemorando 40 anos de Democracia, é necessário deixar de ver somente a couve.
Estou escrevendo sobre esse assunto porque li que um membro da esquerda radical, do Grupo dos Autênticos, que era muito atuante no tempo em que iniciamos a Redemocratização do País, disse que a posição da esquerda radical era a de que a Transição fora inconclusa. Essa opinião estava baseada na percepção deles de que a transição fora um pacto das elites, porque absorvera os militares.
A couve, nessa visão, seria a Transição por negociação e pelo diálogo entre todas as correntes, e não pela outra fórmula. Nosso objetivo era a Democracia e, com ela, a liberdade, a saída do regime autoritário. Eles pensavam numa revolta dentro das Forças Armadas, tomando os militares a iniciativa de entregar o poder. A outra era uma guerra civil, o que implicaria no derramamento de sangue. Nunca em nossa História fizemos essa opção.
Nossa transição foi considerada a mais exitosa de todas, justamente porque abrangeu os militares, que voltaram aos quartéis e tinham, em grande parte, a visão de que chegara a hora de transmitir o poder aos civis.
Uma vez em conversa com Ulysses Guimarães, ele me pedia que punisse, como um sinal, um chefe militar. Eu lhe respondi: Ulysses, não ganhamos pelas armas, mas, sim, por um processo de engenharia política conduzida por você, Tancredo e por mim, com a participação do Aureliano, Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Petronio Portela, Leonidas Pires Gonçalves e muitos outros. Por uma vitória armada, não teríamos jamais a volta da Democracia. A única tentativa que tivemos nessa direção foi a Guerrilha do Araguaia, que deu argumento aos militares de que estavam prontos a destruir, pela luta armada, qualquer enfrentamento ao regime.
Entre os momentos mais difíceis, e talvez o mais importante, no processo de negociação da Transição Democrática, há 40 anos, foi a negociação da anistia com a área militar e com os políticos da ultraesquerda, que se fixavam mais na extinção do Colégio Eleitoral.
Aos pessimistas, que estão muito presentes, tenho a pedir-lhes que examinem os carvalhos que foram plantados, porque as couves têm um período muito curto de vida.
Somos uma Democracia de massa, a sétima economia do mundo, o que por si só afirma a grandeza do nosso País. Instalamos um Estado Social de Direito em que o lado social obteve muitas conquistas, como a liberdade sindical, com a anistia que concedi a todos os líderes que estavam na clandestinidade e chegamos aos 100 anos da República com um operário Presidente, motivo de orgulho e uma marca histórica por ter vindo justamente da classe de trabalhadores, o que mostra a força das instituições brasileiras e seu amadurecimento.
O Brasil é um País de oportunidades, aberto a todas as classes, que podem ascender em qualquer segmento da sociedade.
Não devemos, assim, nos fixar nos aspectos negativos e olhar os positivos, que ultrapassam os negativos. Os erros serão corrigidos, e o que ocorre em nossas vidas é fruto do processo de desenvolvimento e da rotina de todas as nações do mundo.
Vamos olhar o carvalho. Deixar a couve para o almoço.
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OAB celebra trajetória de José Sarney
Com informações da assessoria
Ao reconhecer o papel histórico de José Sarney na redemocratização do país, o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, entregou ao advogado e ex-presidente da República a Medalha Raymundo Faoro, dedicada a quem tem o compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania. A homenagem ocorreu durante a sessão ordinária do Conselho Pleno, nesta segunda-feira (7/4), na OAB-DF.
“No marco dos 40 anos do mais longo período democrático da República, esta homenagem celebra quem inaugurou esse novo ciclo na história nacional. Ao homenageá-lo, a OAB presta um tributo a quem liderou o Brasil em um dos momentos mais sensíveis de sua vida republicana”, disse Simonetti.
O presidente da entidade explicou que a concessão da comenda expressa, ao mesmo tempo, reconhecimento e memória. “Reconhecimento por sua liderança na reconstrução democrática do Brasil. Memória, porque sua presença é indissociável da narrativa constitucional do país”, pontuou, lembrando aos presentes que coube ao presidente Sarney conduzir a transição democrática, convocar a Assembleia Nacional Constituinte e garantir, “com coragem e equilíbrio”, a promulgação da Constituição de 1988.
Na ocasião, Beto Simonetti lembrou da atuação de Sarney marcada pela escuta, pela moderação e pelo compromisso com as instituições. “Uma liderança que compreendeu o papel do Direito na reconstrução da República e o valor da estabilidade institucional como pilar da liberdade e do avanço social. Ao longo de décadas, demonstrou profundo respeito à advocacia, com reconhecimento efetivo do papel da classe na consolidação do Estado Democrático de Direito”, destacou Simonetti.
Natureza constitucional
Às vésperas de completar 95 anos, Sarney, que também é advogado, afirmou que a OAB tem mantido sua tradição, coragem, bravura e a sua importância no cenário nacional. “E hoje, de maneira singular, talvez seja no mundo a única sociedade que tenha o status de natureza constitucional”, apontou o homenageado.
Sarney afirmou que Beto Simonetti tem a mesma grandeza dos ex-presidentes da entidade Raymundo Faoro, que dá nome à comenda, e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a quem exaltou. “No STF [Supremo Tribunal Federal], no STJ [Superior Tribunal de Justiça], e em todos os eventos que nos encontramos, Simonetti tem mantido a independência e a coragem de Rui Barbosa, dizendo as coisas que devem ser ditas”, elogiou.
Prerrogativas da advocacia
O procurador constitucional, presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais e membro honorário vitalício da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, iniciou a homenagem destacando que Sarney é uma das mais emblemáticas figuras da vida política institucional brasileira. “José Sarney é um homem que se confunde com a história recente do Brasil. Parlamentar de vocação rara, intelectual de pena refinada, homem público de espírito democrático, coube a ele a complexa missão de liderar o país em um dos momentos mais delicados e determinantes de nossa história, a transição da ditadura para democracia. Naquela quadra histórica, marcada por expectativas, temores e esperanças, Sarney assumiu a Presidência da República após o falecimento de Tancredo Neves. O fez com sobriedade, serenidade e profundo respeito à nova ordem democrática que se formava. Em seu governo, consolidaram-se as bases da redemocratização, com a reinstalação das liberdades civis e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte”, disse.
Na ocasião, Coêlho elencou a importância da atuação de Sarney para a advocacia, tanto quando ocupou a Presidência da República (1985-1990) quanto o Senado Federal. “Compreendeu, como poucos, que o Estado Democrático de Direito se faz com fortalecimento das instituições, com respeito às garantias fundamentais e com a valorização dos profissionais que possuem a Justiça como ofício. Nesse contexto, foi incansável na defesa da advocacia e de suas prerrogativas. Como senador, protagonizou importantes batalhas em defesa do livre exercício da profissão do advogado como voz de cidadão. Em momentos decisivo, ergueu a sua palavra com lucidez em favor da imunidade do exercício da profissão do advogado e da inviolabilidade dos escritórios de advocacia, marco histórico na proteção das prerrogativas”, ressaltou o ex-presidente da OAB Nacional, lembrando, ainda, sua importante contribuição para a elaboração do Código de Processo Civil (CPC).
José Sarney também foi governador do Maranhão (1966-1970) e deputado federal (1955-1966).
A solenidade foi prestigiada pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Herman Benjamin; o ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca; o ex-senador Edison Lobão; a diretoria da OAB; presidentes das seccionais da Ordem; conselheiros federais; desembargadores federais; entre outras autoridades.
Honraria
Criada em 2008, a Medalha Raymundo Faoro é a mais alta distinção concedida pela advocacia brasileira com o propósito de distinguir personalidades cuja atuação pública se destaca pelo compromisso com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais da cidadania, valores que moldam a história da OAB.
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